quinta-feira, 24 de maio de 2018

Contos de fadas ensinam as crianças a lidar com seus medos




Reportagem
Contos de fadas ensinam as crianças a lidar com seus medos 

Hansel and Gretel
by Wunsch



Por Patrícia Mariuzzo
10/10/2007


“Boi, boi, boi, boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta”. O universo das crianças é povoado de monstros. Em músicas, filmes, literatura infantil, os monstros são acionados das mais diversas maneiras. Eles não suscitam apenas medo, pânico, mas também paixão, fascínio. Isso acontece porque o boi, a bruxa, o lobo mau, o ogro, o gigante, todos eles são essenciais no desenvolvimento psíquico da criança. A infância é a época em que as fantasias precisam ser nutridas, é a época de em que há necessidade de inventar para enfrentar a realidade e disso vai depender boa parte da nossa personalidade futura. Os monstros são uma representação simbólica que a criança utiliza para lidar com a realidade e, assim como os outros personagens dos contos de fadas e fábulas com os quais a criança entra em contato na infância, eles são parte do imaginário, dão movimento, luz e som aos sonhos para, no fim, expulsar o medo do escuro.
As histórias são um pontapé inicial para uma vida mental saudável. Segundo o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) em A psicanálise dos contos de fadas, a verdade na vida de uma criança é diferente da noção de verdade do adulto. Os contos de fada não tentam descrever o mundo externo e a realidade. Uma criança sadia nunca acredita que esses contos descrevam o mundo realisticamente. Oferecer à criança pensamento racional para que ela organize seus sentimentos e compreenda o mundo só vai confundi-la e limitá-la. “A verdade dos contos de fada é a verdade da nossa imaginação”, diz ele em seu livro.


Carolina Caldas tem nove anos. Ao escrever um texto sobre monstros ela diz o seguinte: “Existem dois tipos de monstro: o da imaginação e o da realidade. Para mim o monstro da realidade é o mais medonho... porque ele é de verdade! As vezes é porque a pessoa é muito brava, feia ou chata. Por isso eu costumo considerá-la um monstro!” O pensamento infantil é naturalmente exagerado, nele tudo ganha proporções dramáticas. Nos contos de fadas, as crianças encontram semelhanças no modo de ver o mundo. Assim, elas depositam nos monstros seus medos advindos da consciência de que os adultos são seres separados delas, que nem sempre estão por perto e, o que é mais assustador, são vulneráveis. Para a psicóloga Adriana Mangabeira, do Colégio Equipe, da cidade de São Paulo, o jogo é, por excelência, a melhor situação para lidarem com isso. “Suponho que, para aceitarem o jogo, precisam discriminar o real do faz-de-conta, ou seja, embora sintam medo, sabem que no jogo é como se aquilo estivesse acontecendo. Na brincadeira, podem contrapor, ao medo e à excitação, a certeza de que estão seguros pelo amparo do adulto que as acompanha. Identificando-se com o monstro, são fortes. Fugindo dele e conseguindo se safar, dominam sua figura e seu medo dela. Em geral, repetem exaustivamente o contato com os enredos e as brincadeiras, obtendo cada vez maior controle da situação”, explica.


These illustrations came from:
Crane, Lucy, translator. Household Stories from the Collection of the Brothers Grimm. Walter Crane, illustrator. London: Macmillan & Co., 1882.

Ausência e separação 

Medo e excitação, realidade e fantasia se revezam nos jogos usados para entender o real. E, tanto no mundo real quanto no conto de fadas, é fundamental a presença do adulto, isto é, do pai, da mãe ou do educador. O grande potencial do conto de fadas é sua capacidade de falar, metaforicamente, sobre a estrutura familiar e sobre conflitos psíquicos naturais do ser humano, como o medo da morte ou o medo da separação. Segundo Celso Gutfreind, psiquiatra da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) psiquicamente o monstro é aquilo que desconhecemos, nos desagrada ou que não entendemos. “O medo do pai, a falta da mãe são coisas muito ameaçadoras para a criança”, explica. “O monstro é uma possibilidade de representar esses sentimentos. O contato com estas histórias permite às crianças falar sobre o assunto e elaborar os conflitos. É um pretexto para o diálogo”, acrescenta. Segundo Mangabeira, após a leitura de histórias do saci, curupira, mula-sem-cabeça, lobisomem etc. num grupo de trabalho do Colégio Equipe, as crianças ficaram mais à vontade para expressar seus sentimentos. “Elas se mostraram aliviadas por saber que os outros sentiam os mesmos medos que elas”, conta.
A relação da criança com seus pais e educadores é de amor e ódio. Esse ódio é natural, mas, culturalmente, não pode ser expresso. Em entrevista para a revista Época , os psicanalistas Diana e Mário Corso, autores do livro Fadas no divã , explicam que no pensamento infantil tem incesto, execuções sumárias e massacre de todos aqueles que se interpuserem entre a criança e seus desejos. “Os contos de fadas administram essa pequena loja de horrores da mesma forma que as crianças: neles tudo pode ser aludido, sem que nada tenha que ser explicitado”, disseram. O monstro do conto de fadas oferece uma possibilidade de representar esses afetos. Assim, por meio da bruxa, é possível dar sentido para o ódio sentido pela mãe, a vontade de morder, comum em toda criança, pode ser amenizada pela figura do lobo mau, com uma boca enorme, que devora a vovozinha.
O primeiro grande desafio da criança é criar vínculos com duas figuras principais: o pai e a mãe. Para ela se desenvolver bem, esse encontro com seus cuidadores tem que ser satisfatório, caso contrário podem ocorrer problemas psicológicos e físicos. O psiquiatra Celso Gutfreind participou de uma pesquisa em abrigos franceses para crianças separadas dos pais em caráter temporário, por medida judicial. Crianças com problemas de carência afetiva ou com problemas de transtorno de comportamento foram submetidas à terapia em grupo onde o mediador era o conto de fadas. A terapia era parte da política de saúde na França para promover a reaproximação com os pais. Segundo o pesquisador, as crianças tratadas progrediram significativamente. Um dos resultados foi incrementar o vínculo delas com o educador que assumiu o papel de representante, mas não substituto, da figura materna. “Além disso, por meio das histórias, pudemos manter viva a figura da mãe, a imagem da família, da qual eles estavam afastados”, explica. “A hora da leitura é um momento especial onde a criança recebe atenção total de seus pais, por isso é muito importante para ela. Os contos são um momento de aproximação que proporcionam um encontro real com o outro”, completa.
Shrek x Encantado 
O que é monstruoso ou o que gera medo varia de uma pessoa para outra, conforme a família, a cultura, a época. Na opinião de Gutfreind, violência, insegurança, solidão são os grandes medos dos nossos dias. “Nossa época é um tempo de grande quebra de vínculos. Dependendo do que nos amedronta, nos identificamos com um ou outro personagem”, diz ele. Ocorre, portanto, um processo de identificação muito particular que faz com que um monstro absolutamente ameaçador para uma criança, faça outra rir. Um exemplo dessa inversão acontece com a pequena Boo do filme Monstros S.A. . Ao invés de se assustar com a dupla de monstros Mike e Sullivan, a menina se afeiçoa a eles. O filme mostra ainda como as crianças de hoje não se assustam com qualquer coisa.
Outro exemplo de inversão está na trilogia Shrek onde os papéis de príncipe e monstro são trocados. O ogro é o herói e o belo cavaleiro é o vilão. Para Diana e Mário Corso, o que importa é que a ficção seja capaz de fazer a criança pensar e a faça ir adiante, que forneça elementos para que ela, ao mesmo tempo, solte sua imaginação e resolva seus conflitos. Segundo eles, a ficção que criamos e consumimos é eloqüente, ilustrativa, de um tempo e sua gente. As histórias infantis não prosperam se o que elas têm para oferecer não for o que serve ao seu público. Uma característica em comum de novos produtos culturais como Shrek Harry Potter e os contos de fadas é que eles tentam atingir pais e filhos, permitindo um diálogo entre as gerações. O medo do desconhecido continua por toda a vida, assim os adultos também precisam de metáforas para lidar com isso. A diferença é que no adulto a capacidade de diferenciar o que é real do que imaginário é mais desenvolvida.
A imaginação é um instrumento fundamental de elaboração e construção da nossa identidade. Sair de casa, expulsa pela madrasta, enfrentar um ogro, encontrar no amor a solução de todos os males, travar uma luta mortífera com figuras poderosas e aventurar-se na floresta, virar comida de uma bruxa; situações aparentemente absurdas podem ilustrar nossos conflitos inconscientes. “O mundo pode ter mudado totalmente, mas tornar-se mulher ou homem, assim como enfrentar o crescimento e a morte ainda são nossos problemas. No que diz respeito a essas questões, tudo mudou para que pudesse continuar do mesmo jeito”, finalizam Mário e Diana Corso.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

As mais belas histórias - Carta Capital

https://www.cartacapital.com.br/cultura/as-mais-belas-historias



Cultura

Crônica do Villas

As mais belas histórias

por Alberto Villas — publicado 11/03/2016 02h23
Entre elas, a que fez aprender a não pegar doces escondido


No final de cada capítulo de Fala, memória que estou lendo, paro pra pensar. De noite, como Vladimir Nabokov, coloco a cabeça no travesseiro na tentativa de esmiuçar a memória, ir o mais longe possível para reconstruir a caminhada, passo a passo, desde pequenininho. Até adormecer. 
De manhã, quando vejo um fio de claridade no canto da janela do meu quarto, retomo. Insisto nos sete anos de vida quando, de calça curta ia caminhando pela Rua Lavras até chegar ao Colégio Marista, onde estudava. 
Por enquanto, não me lembro de nada do segundo ano primário, do terceiro, do quarto, do exame de admissão. Lembro-me perfeitamente do primeiro ano, quando Dona Maria Augusta Toscano colocou nas minhas mãos um livro chamado As Mais Belas Histórias, de Lúcia Casasanta. 
Foi num dia de muito frio, chuva e vento. Antes de começar a aula de Língua Pátria, Dona Maria Augusta fechou a porta da sala, uma porta enorme de madeira maciça e vidro fumê, e disse: 
- Vamos fechar porque senão daqui a pouco teremos picolé de Alberto. 
Eu sentava bem perto da porta, um lugar privilegiado que dava para assistir as aulas e ver o movimento lá fora, um professor que passava, uma faxineira que varria o chão, pardais e pombos que chegavam em busca de farelos de pão. 
Minha professora tinha uma pilha de livros em cima da mesa, todos eles meio estropiados, judiados pelo tempo. Mas as mais belas histórias ali dentro, estavam intactas.
Foi nesse dia que comecei a pegar gosto pela leitura. As histórias do livro tinham uma linguagem simples e eu, que acabara de aprender a ler, conseguia ir até o fim de cada uma delas, acompanhando a leitura com uma régua que ia deslizando, frase por frase.
Era uma vez, Dona Cutia que não podia viver sossegada com as amolações dos outros bichos. Uns pediam-lhe água, outros comida, outros lenha. Uns iam visitá-la, outros faziam barulho na porta da casa. Não lhe davam um minutos de sossego. Até de noite os bichos vadios gritavam.
- Vamos à casa de Dona Cutia.
Foi paixão à primeira vista por esse livro, que tinha uma capa azul e desenhos de um espantalho, um coelho, um porquinho, três crianças, um príncipe, uma bruxa e uma Rapunzel jogando suas tranças da janela de um castelo. 
Dona Maria Augusta deixava os alunos levarem os livros pra casa, contando que não os estragassem e que trouxessem de novo para o colégio, no dia seguinte. 
Ia pegando gosto pela leitura a cada história que lia. Que me perdoe, Vladimir Nabokov, mas não me lembro de todas. Um dia vou conseguir buscar na minha memória todas elas, uma a uma. 
A galinha de tia Micaela
Guilhermina, a desastrada
Plantem árvores, meninos
Guilhermina, a desastrada, se não me falha a memória, era a história de uma menina que saiu de casa para comprar um litro de leite, no tempo em que leite vinha numa embalagem de vidro. Ela vinha sonhando com um mundo cheio de coisas que ela queria, quando tropeçou e quebrou o litro de leite, jogando seus sonhos pelo ralo. 
Eu nunca me esqueci da história daquela outra menina que foi a uma festa de aniversário e, muito gulosa, pensou em levar, escondido, um punhado de doces pra casa. Ela carregava uma sombrinha nas mãos e foi dentro da sombrinha que foi colocando os cajuzinhos, os canudinhos, os olhos de sogra, os bombons recheados com uva verde.
Despediu-se de todos e quando saiu, viu que estava chovendo. Esqueceu-se que dentro da sombrinha tinham todos aqueles doces que havia furtado e abriu, na frente de todos. Voou doces para todos os lados e ela quase morreu de vergonha.
Li e reli essa história inúmeras vezes. E cada vez que lia, sofria com aquela menina que tanta vergonha passou.
Caro Vladimir Nabokov, tenho certeza que foram essas histórias que me fizeram gostar tanto de ler e também de contar histórias. E acho que essa última, em particular, me ensinou também a nunca  pegar um doce numa festa e levar pra casa, escondido. 


Alberto Villas - Jornalistas e escritor, acaba de lançar o e-book "Mil Tons, o meu Millôr", pela editora e-galaxia.