segunda-feira, 8 de maio de 2017

O FECHADOR DE OLHOS



QUE DIABOS



SOBRE AS MAIS BELAS HISTÓRIAS - Edélzia Cristina Sousa Versiani



Disponível: Biblioteca da Faculdade de Educação (FAE).
Localização na estante: 372.6044 C335m 
Referência: CASASANTA, Lúcia Monteiro. As Mais Belas Histórias. Belo Horizonte: Editora do Brasil em Minas Gerais, 1958. (Série As Mais Belas Histórias, 1-5).








Lúcia Schmidt Monteiro de Castro nasceu em Santa Luzia-MG (1908-1989). Adotou Lúcia Monteiro Casasanta como nome de casada. Uma das mais importantes educadoras do país, a escritora mineira estudou em Ouro Preto, Belo Horizonte e especializou-se em Metodologia do Ensino da Língua Pátria, na Universidade de Columbia, em Nova Iorque. A partir da sua formação na Escol
Normal, em 1926, dedicou-se de forma brilhante e exemplar à educação. Foi defensora do Método Global de Contos para o ensino da leitura, com enfoque na formação de leitores e criou a primeira biblioteca infantil no Brasil e a primeira clínica para tratar das dificuldades de leitura e da dislexia.
 “As Mais Belas Histórias”, obra célebre de Lúcia Casasanta, faz parte do imaginário literário de várias gerações, pessoas de 7 a 100 anos. Interessante como essa série didática conseguiu e ainda consegue encantar diversas gerações das mais variadas origens. Certamente, essa obra fala diretamente ao inconsciente dos leitores que, ávidos de contato com as coisas mais simples e puras da vida, se identificavam de chofre com essas histórias. Histórias cheias de encantos, sem serem necessariamente contos de fadas de mundos muito distantes. Pelo contrário, falam daquilo que está ao nosso redor, no nosso dia a dia, da vida no campo, da ingenuidade das crianças e dos adultos, dos pobres, das aventuras dos animais, modernamente ligada à ecologia. Fruto de uma mente fértil e saudosista, As Mais Belas Histórias narra o que cala fundo na emoção do leitor, que é capaz de vivenciar personagens, situações e aprendizado, eternizados na sua mente.
Ao reler essa obra, recordo das ilustrações e do não entendimento das letras, porque ainda não sabia ler e já manuseava esses livros, incentivo para me tornar assídua leitora e futura profissional dos livros e da informação.
De tão interessante se faz essa obra, que verifico, por vários meios, digitais e analógicos, a busca do resgaste de pelo menos uma de suas histórias. Muitos têm esses livros como verdadeiras jóias, raridades que gostariam de novo folhear, ler, recordar e repassar para filhos, sobrinhos, netos... Que emoção proporcionar aos pequenos o privilégio de conhecer e se embalar nas histórias dos Três Porquinhos, Joca, Rapunzel (- “Rapunzel! Lance-me suas tranças!”), João Jiló ([...] “- Ai! João Jiló! Atire devagar, João Jiló, porque dói, dói, dói, João Jiló!”), Epaminondas, A Cabra Cabriola, João Felpudo e tantas outras narrativas da maravilhosa lavra dessa emérita professora. As Mais Belas Histórias ... obrigada, Casasanta, pela Festa no céu, que nos ensina a pedir para nos jogar na pedra!
Edélzia Cristina Sousa Versiani
Bibliotecária do Instituto de Ciências Agrárias


Edélzia Sousa
Bibliotecária

ICA/UFMG




Era uma vez... E ainda é




Era uma vez... E ainda é

Por Andrea Pires Magnanelli

Ao entrar em uma sala de aula com crianças de cinco anos, carregando um livro de contos de fadas, um professor carrega mais que um livro. Mais que um simples conto. Quando o professor é um bom contador de histórias, o olhar daquelas crianças fica fixo, mas a mente voa.
Como esses contos tornaram-se clássicos, se a narrativa acontece em palácios ou florestas e isso é tão distante da maioria das crianças, visto que não é comum encontrar palácios na cidade de São Paulo? E, apesar de existirem poucas florestas na nossa cidade, os jovens dão um jeito de se embrenhar em matas desconhecidas apesar do aviso de perigo dos pais.
Os contos trazem conflitos pertinentes à vivência humana que permeiam diversas gerações. Eles trabalham com o conteúdo humano, com aquilo que muitas vezes fica escondido como a rivalidade fraterna, sensações edípicas, desejar a “morte” do pai do mesmo sexo... Desta forma, o conto de fada irá mostrar às crianças, de uma maneira subjetiva e em alguns pontos objetivamente, que a vida trará algumas dificuldades. A luta e a descoberta não acontecem da noite para o dia. O herói ou a heroína passam por diversas provas e essas devem ser realizadas por eles mesmos: “A única forma de nos tornamos nós mesmos é através de nossas próprias realizações”. (Bettelheim, 1980:173).
A sociedade atual, globalizada, está cada vez mais tornando-se individualista e em busca de uma beleza externa perfeita, enquanto o mágico se esvai prematuramente.
Todos os dias há notícias de violência na televisão, seja filho matando os pais ou pais descontrolados espancando seus filhos.
Há também muitos programas que expõem a criança a uma sexualidade precoce. Seja programa infantil, novela ou “reality shows”. Uma reportagem da revista Educação, mostra-nos que os partos cresceram em 31% entre meninas de 10 a 14 anos – idade que a menina não tem maturidade psicológica, principalmente para criar um filho. As dúvidas e as angústias por que passam, crianças e jovens, são hoje respondidas de forma erotizada pelos meios de comunicação, especialmente a televisão. Sem contar o fácil acesso a sites da internet.
O resgate da magia da leitura dos contos de fadas não será a solução dos problemas mundiais, no entanto, como eles atuam também no inconsciente, podem ajudar muito a criança a eliminar/entender o(s) conflito(s) pelo qual está passando no momento que entra em contato com a leitura e/ou a escuta deles.
Existem diversas interpretações e análises para os contos de fada. É importante ressaltar que este artigo tem como respaldo a linha psicanalítica, levando em conta as teorias de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Além disso, a escolha dos contos de fadas para a leitura foi cuidadosa, no sentido de procurar as traduções mais próximas das edições originais.
 “Não é surpreendente descobrir que a psicanálise confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças encobridoras”. (Freud, 1913:355).
Os contos surgem a partir dos mitos e tradições orais, alguns datados do século II d.C.. Eles sofreram e sofrem modificações em sua estrutura, não apenas por razões externas, mas também por razões internas ao do próprio contador. Nas versões escritas por Perrault, por exemplo, ele acrescenta preceitos morais, já que esses contos eram usados para a diversão na corte de Versalhes.
Nos dias atuais, essas alterações também ocorrem acarretando muitas vezes uma modificação no enredo da história para parecer menos “chocante” aos olhos da sociedade. Os autores dessas mudanças acreditam que a perversidade existente nos contos podem influenciar as crianças de forma a estas tornarem-se “violentas”, no entanto, parece não querer ver que os conflitos existentes nos contos são os conflitos internos pelos quais as crianças passam.
As histórias dos contos de fadas, independente do local de origem, passam-se em lugar e épocas inexistentes (“país muito longe”, “numa floresta encantada”, “há muitos e muitos anos”...). Esta é uma das razões da fácil migração e entendimento em várias culturas e por várias idades, já que os contos tratam de conflitos que permeiam toda a base humana universal. Ou seja, os contos são atemporais, assim como o Id.
Os principais autores e adaptadores de contos de fada são Charles Perrault (França), Hans Christian Andersen (Dinamarca) e Jakob e Wilhelm Grimm (Alemanha) – estes últimos mais conhecidos como “Os irmãos Grimm”.
Mas, afinal, qual a relação entre contos de fadas e a subjetividade infantil? Quais os conteúdos presentes em um conto que possibilitam a uma criança elaborar seus conflitos? É impossível detalhar cada trecho e cada passagem de todos os contos, não apenas pelo número volumoso de contos, mas principalmente porque cada conto tem uma importância diferente para cada criança em períodos diferentes de sua vida.
Como se constitui um sujeito? Quais os conflitos que vive? Lacan, apropriando-se de Freud, nos oferece referenciais partindo do Estádio do Espelho. Este Estádio, descrito por Lacan, começa aproximadamente aos seis meses de idade. É através dele que a criança começa a conquistar sua imagem corporal, através do discurso e do desejo do outro (mãe).
De que forma os contos de fadas expressam esse momento e seus conflitos? Como ilustração podemos citar o conto: O patinho feio. Nesta história de Andersen, uma pata choca seus ovos e quando estes se quebram um sai diferente de todos os outros. Feio. Apesar de nadar muito bem, o patinho é desprezado pelos seus irmãos, pela comunidade dos patos e por sua mãe que diz: “Eu queria ver você bem longe daqui!” (Andersen, 1995:110).
O patinho começa a achar que ele é realmente muito feio, então foge. Durante sua viagem passa por dificuldades e seus infortúnios são responsabilizados pela sua feiúra. Até que em um momento, ele vê os cisnes e vai ao encontro desses, mesmo correndo o risco de levar bicadas. Chegando lá:
“(...) O pobrezinho abaixou a cabeça, olhando para a água, e esperou. Mas que foi que ele viu na água límpida? Por baixo de si, viu sua própria imagem; só que sua imagem não era mais de um desajeitado pássaro cinza-escuro, feio e repelente. Ele era um cisne!” (Andersen, 1995:118).
O patinho, na verdade um cisne, já havia nadado antes em outros lagos. Porém, olhava-se através do olhar do outro, assujeitado ao desejo e olhar do outro – principalmente daquela que exerce a função materna. Saindo para o mundo, crescendo, quando volta a olhar sua imagem ele já vê um lindo cisne branco e não apenas um pato cinza feio – saída dessa assujeitação. É nesse Estádio que a criança começa aos poucos perceber que seu corpo, até então sentido como fragmentado, é algo único. É através dessa experiência, com a mediação do outro-mãe (mãe, enquanto função materna), que a criança começa estruturar seu eu e a conquistar a sua imagem corporal.
Essas identificações que as crianças fazem com os contos são facilitadas pela não especificidade de tempo e local. A identificação com os personagens é facilitada pela ausência de nome próprio. Normalmente o nome é relacionado às características físicas, como por exemplo, Branca de Neve e Cinderela ou Gata Borralheira (o nome origina de cinders, que significa borralho), um dos únicos nomes próprios que aparece é João – freqüente em muitas histórias – e Maria). Nos contos, a idade das princesas, reis, rainhas, bruxas, príncipes, etc. não é definida sendo possível transitar por todos os personagens em momentos diferentes de nossa vida.
No conto há o personagem malvado, que geralmente é nominado e aparece sob a descrição da madrasta da “Branca de Neve”, a bruxa da casa de chocolates de “João e Maria” e o gigante que mora nas nuvens na história “João e o pé de feijão”. Ou seja, a maldade pode estar presente em todos nós. Nos contos, os personagens não têm ambivalência: ou são bons ou são maus – da mesma maneira que a criança pensa: a mãe má não pode ser a mãe boa.
Na atualidade, muitos contos aparecem de forma distorcida do original. Um grande exemplo disso, são os desenhos animados de Walt Disney, que subtraem passagens consideradas mais fortes com o objetivo de não assustar ou chocar as crianças, “evitando” o conflito. Não podemos generalizar, algumas histórias de Disney merecem a devida atenção como O rei leão e a mais nova animação, Procurando Nemo. No entanto, quanto à adaptação de contos de fadas clássicos, estes aparecem distorcidos e amenizados.
Os contos no original podem chocar alguns adultos, é “assustador” um lobo que come uma menina (Chapeuzinho vermelho) ou uma sereia que arranca sua própria língua em
busca do amor de um humano (A Sereiazinha) ou um rapaz que procurando o medo retira sete enforcados da forca para aquecê-los (O homem que saiu em busca do medo). Muitos adultos olham as crianças sob a lógica do adulto e não sob a fantasia da criança.
Quando pequena, a criança pode ser bem agressiva: bater no irmão, não sair de perto da mãe, morder o colega da escola... a medida que cresce e começa a socialização a criança fala, ao invés de agir – simbolizando. E o conto é exatamente a escrita de uma simbolização, de um mundo onde a criança pode extravasar seus anseios, medos e necessidades.
Escondendo a dor, a perda, a violência dos contos, esconde-se o que há de mais verdadeiro nessas histórias. O conto não deve ser só feito de imagens boas, pois não deve ser uma fuga para as crianças se esconderem em um mundo de faz de conta. Mas, conter as passagens de medo, angústia, vingança como um meio da criança simbolizar seus próprios conflitos.
O enredo dos contos de fada também reproduz as histórias de vida das crianças, pois nele o herói sai de casa, passa por privações, enfrenta perigos e conhece a maldade, triunfando no final da história. Na vida, a criança passa por estas modificações: precisa sair de casa. Desligar-se dos pais. Ir para escola, fazer amigos, saber evitar situações de risco, explorar o mundo a sua volta.
A criança tem relação de total indistinção com a mãe nos primeiros meses de vida. A criança é o desejo da mãe. Essa quebra se dá com a interdição ao incesto que a função paterna realiza. A partir desse momento a criança, volta-se para a cultura. Para o Outro. E o conto de fadas entra como este Outro, pois também pode ajudar na separação dessa relação mãe-criança. Isso acontece, pois, de maneira simbólica, o conto atua no psíquico da criança.
Podemos tomar como exemplo o conto de Andersen, A Polegarzinha. Nesta história, uma mulher deseja muito ter um filho, então pede ajuda a uma feiticeira que lhe dá um grão de cevada - semente. A partir do beijo da mãe, a flor se abre e nasce a filha, como é muito pequena, recebe o nome de Polegarzinha. Um dia, enquanto está dormindo, uma sapa a seqüestra para casar-se com o filho sapão. No entanto, a menina foge com a ajuda dos peixes. Um besouro a pega para casar-se com ele, mas todos os outros insetos dizem que Polegarzinha é muito feia. Depois de ser deixada pelo besouro a personagem acredita ser feia. Ela encontra-se, então, com uma rata, e esta também quer realizar o casamento da Polegarzinha com o vizinho toupeira, por este ser rico e inteligente. Enquanto está na casa da rata, a menina salva uma andorinha e esta depois ajuda sua salvadora a fugir do casamento, levando-a para um lugar onde há outras pessoas como ela – pequena como o dedo polegar. Lá então Polegarzinha conhece um homem com quem se casa.
Esta pequena história nos mostra que Polegarzinha vive segundo os desejos do Outro. É sempre levada, carregada para os lugares sem ser questionada. Quando a andorinha aparece, a personagem faz uma escolha, pois lhe é feita uma pergunta: “O frio inverno está chegando – disse a pequena andorinha – Estou de viagem para as regiões quentes. Você quer vir junto?” (Andersen, 1995:34).
A criança quando pequena, é o desejo da mãe, tem medo e gosta daquilo que a mãe gosta. Para ilustrar, transcrevo um trecho da fala de uma paciente de Maud Manonni: “A fumaça”, diz Isabelle, “arde nos olhos das crianças. Elas têm medo. No fundo elas não têm medo, é porque a mamãe tem medo que elas têm o medo da mamãe(...)” (Manonni, 1988:137).
O conto ilustra Polegarzinha presa ao desejo dos outros até que toma sua decisão e parte, libertando-se dos desejos dos outros e tornando-se um sujeito desejante. Agora, já caminha com seus próprios pés, sem precisar ser levada pelos outros.
A pesquisa realizada para este artigo apenas está começando. Este é um pequeno apanhado de quantas significações e significados podemos encontrar em uma literatura de tão fácil acesso como os contos de fadas. Para percorrer este caminho agi um pouco como Chapeuzinho Vermelho, ao olhar pelos cantos. Em alguns momentos saí da trilha, mas logo retomei o meu rumo. Em outros, fiquei como a Bela Adormecida, esperando o momento para despertar e então escrever mais algumas linhas. Em outras, sendo ousada, como a menina que percorre o mundo em “Os sete corvos”.
Os contos de fadas vêm mobilizando milhares de crianças, jovens e adultos durante muitas décadas. Muitos trazem lembranças, sejam boas ou más, de algum conto em particular. Como cada um vivencia um conto é único.

* Este artigo baseia-se na monografia “Era uma vez...” - os contos de fada como mediadores no trabalho psicopedagógico para uma possível resolução diante dos conflitos internos infantis.
Andrea Pires Magnanelli é especialista em psicopedagogia na PUC-SP.
Referências Bibliográficas:
 ANDERSEN, Hans C. Histórias maravilhosas de Andersen. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995.
 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
 FREUD, Sigmund. A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de contos de fadas. Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XII, 1913.
 MANNONI, Maud. Efeitos da reeducação em uma criança neurótica. In: A criança retardada e a mãe. São Paulo: Martins Fontes,1988. p. 125-146









A verdadeira moral da história



A verdadeira moral da história
O segredo do sucesso dos contos de fadas é o seu poder de estimular nosso inconsciente. Entenda as entrelinhas psicológicas dos clássicos que mexem com crianças e adultos

Texto Emiliano Urbim

Era uma vez uma aldeia onde os moradores passavam as noites contando e ouvindo histórias. As preferidas eram aquelas com enredos fabulosos, mas que despertavam sensações reais, confusas, secretas. Ao redor do fogo circulavam contos sobre bruxas e princesas, belas e feras, meninas e lobos, onde sobravam fome, medo, vingança e morte. E ao final, nem sempre feliz, alguém sempre pedia: “Conte outra vez”.

Em aldeias como essa, de histórias como essas, surgiram os contos de fadas (batizados por uma senhorinha francesa insensível ao fato de que a maioria nem fada têm). Os originais medievais eram destinados a ouvintes de todas as idades, mas, uma vez eleitos favoritos da infância burguesa, foram sendo sucessivamente amenizados até chegarem às atuais versões “censura livre”.
Essas narrativas são um patrimônio abstrato da humanidade, passado adiante via voz, livros, rádio, TV, internet – e, para quem está na faixa dos 30, vinis coloridos. “Isso é absolutamente surpreendente num mundo cada vez mais mutante”, afirma o casal Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso no livro Fadas no Divã, onde fazem uma análise psicológica das histórias infantis. “Como esses restos do passado vieram parar nas mãos da crianças de hoje?”, perguntam os psicanalistas.
Nos anos 70, o austríaco Bruno Bettelheim emplacou a tese de que os contos que sobreviveram são aqueles que mais mexem com o inconsciente de narradores e ouvintes. Uma seleção natural favoreceu as histórias que reverberam na mente, que trazem nas entrelinhas questões emocionais, sexuais, familiares, universais. “No conto de fadas, o paciente encontra soluções analisando as partes da história que dizem respeito a seus conflitos”, escreve em A Psicanálise dos Contos de Fadas. Preservamos a história de Chapeuzinho não porque ela ensina a ter cuidado com estranhos, mas pelos sentimentos estranhos que ela provoca.
Nas próximas páginas, mostramos que a interpretação de clássicos como Branca de Neve, Patinho Feio e Cinderela pode ser reveladora, tanto para quem já perdeu o medo do lobo quanto para quem ainda espera pelo príncipe encantado.





Chapeuzinho Vermelho
Versão condagrada – A pedido da mãe, uma menina deve atravessar um matinho sinistro pra levar comida até a casa da vó doente. No caminho, Chapeuzinho é abordada por um lobo, que lhe indica um desvio longo enquanto pega um atalho até a casa da velhinha e a devora sem dó. Chegando lá, Chapeuzinho trava um diálogo recheado de duplos sentidos e também é comida. Eis que um caçador salva o dia, tirando avó e neta da barriga do lobo.

Outra história – Na versão compilada por Perrault em 1697, a menina e a velhinha morriam. Foram os Grimm, que, 160 anos depois, tiraram o caçador do chapéu. O final varia, mas mantém-se o sugestivo diálogo que começa com “pra que esses olhos tão grandes?” e termina com “pra te comer melhor!” Existe uma versão anterior à tradicional, que inclui canibalismo (a menina bebe o sangue e come a carne da avó), strip-tease e até sugestão de golden shower. Sim, o lobo pede que a menina urine sobre ele.
Interpretação – Uma questão recorrente é por que Chapeuzinho dá trela ao lobo? “Ela é uma criança com a ingenuidade de quem não sabe sobre o sexo. Ela pode não saber que jogo está sendo jogado, mas é inegável seu interesse em participar”, escrevem os autores de Fadas no Divã. Esse caminho interpretativo leva ao campo minado da sexualidade infantil. Segundo Freud, nossas primeiras experiências sexuais são encobertas por uma espécie de amnésia que vai até os 6 ou 8 anos. A história teria sobrevivido por usar símbolos que nos fazem pensar nessa questão. Ou seja: o conto não fala apenas sobre o perigo do desconhecido, mas sobre a perda da inocência.

Para maiores – No sexo, há adultos que agem como uma menina diante de um lobo. “Quando a vida lhes impõe um papel sexual, vão oferecer o que têm: sua ingenuidade. Ser uma assustada Chapeuzinho é até onde vai a sexualidade de quem não quer saber nada do assunto”, escreve o casal Corso.






Branca de Neve
Versão consagrada Sentenciada à morte por ser mais bela que a madrasta, Branca escapa e é acolhida por 7 anões. Mas a megera não sossega: disfarçada de bruxa, encontra a rival e lhe dá uma maçã envenenada. A jovem entra em coma, mas o beijo de um príncipe lhe devolve a vida. A madrasta é punida com a morte.

Outra história – Apenas no filme da Disney os anões ganharam personalidades distintas.
Interpretação – Em contos de fadas, madrasta é apenas um nome feio para mãe – neste caso, uma mãe que inveja a filha que vira mulher enquanto ela envelhece. Repare: o conflito só começa depois que o espelho informa que a madrasta não é mais a nº 1 do reino – a identidade feminina da adolescente Branca de Neve já está em construção. E a obra se completa com um leve toque de machismo: assim como a Bela Adormecida, ela só conquista o príncipe semimorta – ou seja, inerte, quietinha, comportada, como se espera de uma boa moça.

Para maiores – Todo namorado tem um pouco de “espelho, espelho meu”, constantemente requisitado a confirmar que, sim, a parceira é a mais linda e, não, não existe mais ninguém. E que ele a ama. Pra sempre. De verdade.




Patinho Feio
Versão consagrada – Banido do ninho por deficiência estética, o Patinho enfrenta doses variadas de rejeição administradas por humanos e animais. Ao final, entre iguais, descobre que não era um pato feio, mas um lindo cisne.

Outra história – Diferentemente da maioria dos contos de fadas, compilados do folclore europeu, este é uma criação do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).
Interpretação – O mérito do conto é mexer com o senso de deslocamento comum a toda criança. Todo mundo, em algum momento, sente que está no lugar errado, seja a família, seja a escola, a turma, o mundo. Por outro lado, permite aos pais viver na ficção o pavor de ter o filho surrupiado.

Para maiores – Alguns carregam o “complexo de patinho feio” para além da infância, achando-se eternamente rejeitados e deslocados. Especula-se inclusive que Andersen tenha feito o conto refletindo seus problemas de auto-estima.





João e o Pé de Feijão
Versão consagrada – Em vez de vender uma vaca como sua mãe pediu, João topa com um açougueiro/engenheiro genético e troca a mimosa por feijões mágicos. Leva um esporro, mas as sementes crescem até o céu, onde João encontra um gigante, de quem rouba vários tesouros. Durante perseguição ao meliante, o grandão cai lá de cima e morre. João e a mãe vivem ricos e felizes para sempre.

Outra história – Na primeira versão (1807), João sobe aos céus para vingar o pai, um cavaleiro morto pelo gigante.
Interpretação – Cavaleiro, açougueiro, gigante: todos são faces do mesmo pai. A trajetória de João reflete o processo natural (mais para homens, menos para mulheres) de assimilar características e desejos da figura paterna na construção da própria personalidade – inclusive se distanciando um pouco da mãe.

Para maiores – Há caçulas que passam a vida tratando irmãos mais velhos como gigantes – para o bem e para o mal.




O Príncipe Sapo
Versão consagrada – Uma princesa mimada maltrata um sapo e é obrigada a dividir cama e mesa com o batráquio. Depois de um tempo, ela acaba caindo pelos encantos do bicho. E, assim que os dois se beijam, num passe de mágica, ele vira um príncipe.
Outra história A versão original não tem beijo: o sapo se transforma após ser jogado na parede.

Interpretação – Diferentemente de histórias que terminam no casamento, esta e A Bela e a Fera lidam com o complexo “depois”. O nojinho da princesa com o ser viscoso pode simbolizar o incômodo das crianças com o sexo, ou simplesmente com relacionamentos fora da família – ambos redimidos ao final do conto.

Para maiores – Essa princesa é da linhagem das “megeras domadas”, que esperneiam, mas ao fim se submetem ao papel passivo reservado a elas.





Cinderela
Versão consagrada – A madrasta e as meias-irmãs de Cinderela lhe delegam o trabalho doméstico, na esperança de que o batente a embarangue. Mas chega o baile real. Repaginada por fadas, Cinderela brilha e conquista o príncipe, que guarda da noite um sapatinho de cristal, abandonado pela bela enquanto fugia em desabalada corrida. O príncipe sai calçando todas em busca da dona do sapato, até dar com o pé de Cinderela e ambos viverem felizes para sempre.
Outra história – Há versões em que as irmãs invejosas são cegadas por aves amigas de Cinderela.

Interpretação – Na superfície temos a fantasia dos adolescentes de que a sua vida não pode ser a real: existe um destino melhor, que lhe pertence e que lhe foi roubado, simbolizado na história pelo príncipe. “Essa história permite uma empatia imediata de qualquer filho, já que cada um se sentirá demasiado injustiçado e exigido, assim como pouco amado. Acreditamos que daí provém seu sucesso”, escrevem Diana e Mário Corso. “Onde houver irmãos, haverá desigualdade de fato ou a suposição de que ela existe.” Como costuma acontecer, a figura materna é multifacetada: é a mãe bondosa que foi, a madrasta exigente e a fada que inspira sonhos. Quanto àquele sapatinho, sim, ele pode ser interpretado como um traço de fetichismo, uma dica precoce de que alguns elementos podem valer muito no jogo da sedução.

Para maiores – “A história de Cinderela é constantemente reciclada, em séries como Sex and the City e boa parte das comédias românticas”, diz Maria Tatar, folclorista da Universidade Harvard e autora de Contos de Fadas: Edição Comentada e Ilustrada. A personagem também une fantasias masculinas geralmente conflitantes: a princesa para casar e a serviçal para… bem, servir. “Cinderela persiste na fantasia feminina. Independentemente da mulher forte e capaz que ela se mostre no mundo, Cinderela será a que, na intimidade, se disponha a brincar de esconde-esconde”, afirmam os autores de Fadas no Divã.


Thumbelina
by E. A. Lemann
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