Contos
de Fada, uma visão psicológica
“Não, não devemos ter
receio de levar o maravilhoso às crianças” essa
frase de J. P. Stahl está no prefácio dos Contos de Perrault de 1883 e
completou 126 anos. Sthal como estudiosos da psicologia infantil modernos se
entendem no aspecto da fantasia necessária à infância ainda que mais de um
século os separem. Se levarmos em consideração que no século XIX, quando a
frase foi escrita, a educação nos parece bastante rígida nos moldes tradicionalistas,
que tanto se teme hoje, veremos que a visão do universo infantil encontrava um
avanço nas palavras do prefaciador de Perrault. Mas o universo infantil é muito
mais antigo e a infância conservadora no sentido de que se vive nela os mesmos anseios
e dramas há séculos. Podemos entender também que os medos infantis são os
mesmos e que se repetem a cada geração. Uma prova irrefutável disso se encontra
em uma das fábulas de Esopo. Nela a ama tentar silenciar uma criança chorona
ameaçando-a de chamar o lobo para levá-la. O lobo, que ouvia a conversa e
estando faminto, alegrou-se da ameaça e postou-se à janela a esperar sua
refeição, que não veio, pois a criança cessou o choro. A ama, agradecida, disse
enérgica que se o lobo chegasse teria de se ver com ela defendo seu bebê.
O animal assustado pôs-se a correr. Se há 500 anos antes de Cristo essa criança emitia um comportamento completamente compatível com padrões atuais, é porque a infância possui uma característica imutável e universal. A ama agiu como ainda hoje muitos adultos agem, pois sabem de antemão que a criança teme pela sua integridade física (um temor básico). A criança tem a capacidade de crer. Se dissermos a ela que o lobo mau ou o bicho-papão virão buscá-la, ou que papai Noel existe ela não questiona, crê. Assim o é com as fadas, animais falantes, duendes, bruxas e outros personagens dos contos de fada. Muitas delas nunca viram um castelo e se encantam com a presença deles em muitos contos sem questionar sua existência. Talvez o fator “conservadorismo infantil” garanta à literatura fantástica presente nos contos de fada o seu sucesso através dos séculos.
happens when you believe people who say one thing and mean another. |
O animal assustado pôs-se a correr. Se há 500 anos antes de Cristo essa criança emitia um comportamento completamente compatível com padrões atuais, é porque a infância possui uma característica imutável e universal. A ama agiu como ainda hoje muitos adultos agem, pois sabem de antemão que a criança teme pela sua integridade física (um temor básico). A criança tem a capacidade de crer. Se dissermos a ela que o lobo mau ou o bicho-papão virão buscá-la, ou que papai Noel existe ela não questiona, crê. Assim o é com as fadas, animais falantes, duendes, bruxas e outros personagens dos contos de fada. Muitas delas nunca viram um castelo e se encantam com a presença deles em muitos contos sem questionar sua existência. Talvez o fator “conservadorismo infantil” garanta à literatura fantástica presente nos contos de fada o seu sucesso através dos séculos.
Os contos de fada foram criados pelos adultos que neles projetaram parte
de seus medos inconscientes. “Todo medo tem sua origem na infância” e é para a
infância que são dirigidas essas criações da cultura onde se é possível
encontrar coerência dentro das contradições da vida que se nos apresenta a cada
instante. Neles é possível encontrar o pensamento coletivo, social nas diversas
formas da atividade humana, do amor ao ódio, do trabalho ao ócio, da virtude ao
vício. Traduzem de maneira simbólica a maneira pela qual os mundo adulto e
infantil se cruzam e se falam sem contudo ter a crueza da realidade, mas também
sem dissimulação. O fato de se apresentar nesses contos a vida em forma de
fantasia não significa tapear ou enganar a criança. A vida é por demais
estranha a ela e sua forma de ver o mundo é através da fantasia. Nesse sentido
os contos são criações sábias, pois possuem a capacidade de dialogar com o
mundo infantil de maneira criativa transformando-se assim em um elemento
terapêutico trabalhando as angústias, tristezas e perdas que acontecem e fazem
parte de nossa vida.Entenda-se que ao contar uma história não estaremos a fazer
terapia e sim agindo de forma terapêutica, acalmando, dialogando, exercendo sobre a
criança uma ação extremamente humana. Uma espécie de catarse quando se
poderá, naquele momento, vivenciar sentimentos de piedade, prazer e desprazer,
bem como possíveis traumas acumulados já em tão pouco tempo de vida através dos elementos constantes do conto.
Assim como os contos de fada, os jogos infantis, ao que parece, são
também universais comprovando que a infância “é a mesma” em épocas diferentes.
Toda criança joga. Em um famoso quadro do século XVI, Pieter Bruegel pintou uma cena chamada Jogos Infantis, na qual ele
nos mostra pelo menos 84 tipos diferentes de jogos da época sendo que alguns
deles jogados até hoje. “Um verdadeiro
estudo antropológico das atividades lúdicas das crianças flamengas do século XVI. Os jogos não comportam alegria:
nenhuma criança ri”.(Gênios da Pintura - 1980 ).Pode parecer estranho que
nenhuma criança sorria mas à época em que foi pintado o quadro, crianças eram
consideradas pequenos adultos, a infância uma parte muito pequena da vida, e a
obra do pintor é por demais sombria. No entanto a atividade representada é de tal força que o tema fala por si só. As atividades frenéticas não correspondem à
sobriedade dos rostos.
Estamos na era da comunicação e o século XX sua era de ouro. Os
computadores e outros artefatos eletrônicos ameaçaram roubar o espetáculo dos
contos maravilhosos. No entanto toda a parafernália eletrônica não foi capaz de
ocupar o lugar das histórias infantis tradicionais que povoam a mente de
crianças do mundo inteiro. O que pode ter acontecido é que os contos foram
deixados de lado porque há uma nova configuração da família. Essa atividade
doméstica, de contar histórias, está relegada a um plano inferior, pois a
família mudou, transformou-se em outra família. A questão econômica retirou dos lares pai e mãe que tinham uma
presença maior em casa e o hábito de contar histórias verificava-se de um
adulto para uma criança. Adultos e idosos, que até então eram fonte de
conhecimento, se viram relegados também a um segundo plano nesse sentido. A
terceira idade (ou o adulto em geral) retinha um saber que o mais jovem não possuía e entre eles
encontrava-se os contos, a capacidade de narrar, da tradição oral além, de casos fantásticos e, é claro,
a experiência de vida. O mais velho retém um saber que interessava (interessa) à criança.
O contato da infância com outra geração mais velha é importante na
medida em que humaniza as relações retirando de artefatos artificiais
mecanizados a fonte principal de conhecimento. Contar história envolveria,
então, uma relação harmônica entre gerações solidificando o papel do adulto
como o de autoridade que a criança, os mais jovens, tanto buscam ainda que a
princípio se oponham a ela.
Quando um adulto dispensa à infância um tempo para a narração de um
conto, alguns fatores podem ser observados. Um primeiro, a afetividade. Está
nessa hora, sendo dispensada atenção à criança e ela sente isso e agradece,
pois o ato de contar histórias está impregnado de afetividade. É como se ela
recebesse um presente. Sobre isso Lewis Carol observou em um poema “Criança da
pura face sem névoas/E sonhadores olhos de espanto/Embora o tempo seja veloz/E
meia vida separa você e eu/Seu adorável sorriso bem certo saudará/O presente de
amor de um conto de fadas”. [1]
A meia vida que separa criança e adulto encontra uma mediação no ato de contar
histórias. Aí as diferenças existem como fatores para a solidificação das
relações. Diferenças que fazem exatamente o encontro entre esses dois mundos. O
adulto domina um vocabulário e uma técnica narrativa que faz com que a criança
se envolva e se entregue ao ato de ouvir tão necessário ao aprendizado.
Ao narrar, o adulto se coloca como autoridade, pois além de dominar um
vocabulário demonstra conhecimentos que vão além do real e do imediato fora da
esfera pragmática do cotidiano. Na imaginação infantil surge uma questão em
decorrência dessa habilidade adulta -”como reter tanta informação?” Tal fato
desperta na criança admiração e respeito pela figura do adulto. A comunicação
acontece satisfatoriamente. “A relação adulto/criança segundo José Fernando
Miranda, é cada vez mais delicada e exigente”. O adulto não atua somente pelo
que diz e age – mas por aquilo que realmente é. Os aspectos da sensibilidade
são os que mais influenciam a criança. A ela não interessa a
competência profissional do professor e sim sua capacidade de comunicar e ser
sensível, de compreender e aceitar. Nem tão pouco o fato do adulto ser correto,
ético, mas de corresponder no mundo real coerentemente ao que apregoa. A
criança é um ser intuitivo capaz de ler nas entrelinhas, de entender o não
dito.
Um outro aspecto encontra-se na pausa que deve ser dada para a narração.
O tempo do conto é o tempo em que os afazeres corriqueiros são esquecidos
momentaneamente e a relação adulto/criança se fortalece. Há uma percepção
diferenciada do tempo que estimula o bem estar inclusive físico. É também a
pausa para o descanso. A criança aprende, sem traumas, que se faz necessária
uma postura intelectual e física, diferenciada daquela que geralmente apresenta
no dia a dia, para escutar. Isso será de fundamental importância na vida
escolar.
Nessa atividade há também a importância do contato com a linguagem
muitas vezes característica e particular aos contos. As palavras são observadas
pela criança, o que pode ter influência benéfica no processo de alfabetização
e, mais tarde, no gosto pela leitura. Estruturas gramaticais, vocabulário e
entonações de voz compõem uma situação na qual adulto e criança se envolvem
dando dimensões novas ao contato mútuo incentivando e vivenciando situações
lúdicas. Expressões como Era uma vez...Houve uma vez um tempo... Levam à
imaginação da criança uma outra dimensão. Uma dimensão mágica e diferenciada
dos apelos televisivos, principalmente, que roubam a chance de se poder
imaginar o que é transmitido oralmente. Em muitas histórias irão surgir
personagens que não fazem mais parte do nosso tempo onde as necessidades
econômicas são outras daquelas do tempo do conto. No entanto até esse aparente
anacronismo torna-se importante, pois nos contos de fada há um registro
histórico. Algumas vezes surgem personagens como moleiro, hortelão, príncipe,
princesa que, se fazem parte algumas do nosso vocabulário corriqueiro, outras
são por demais anacrônicas. É justamente esse anacronismo um importante
elemento para que o mais jovem assimile uma característica típica do adulto,
segundo Neil Postman, - preocupação com a continuidade histórica.
No adulto concentra-se a narrativa, ele dá o tom da história e promove a
atenção da criança. Essa atividade que já foi prática comum em nosso meio tende
a desaparecer com a nova configuração da família e a perda da tradição oral.
Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala nos informa que no interior do Brasil
do século XIX havia uma preocupação das famílias em fornecer às suas crianças
essa oportunidade de ouvir histórias contratando negras que percorriam os
engenhos ensinando histórias aos adultos. Eram chamadas aki-palôs.[2]
Essa atividade como atividade doméstica pode sim desaparecer, porém os contos
de fada continuarão, pois são criação do inconsciente coletivo, nos falam em
linguagem arcaica e simbólica de elementos que agem diretamente ao sentimento e
não à razão.
Com o desenvolvimento e transformação da economia, a família tomou um
novo formato. O lugar da mulher há muito deixou de ser o de dona de casa. Ela
também é parte da população economicamente ativa. Por essa e outras razões a
atividade de contar histórias reduziu-se. Provavelmente muitos dos pais jovens
de hoje não ouviram histórias de seus pais. Às escolas ficou relegado esse
papel. Nela ou em algumas delas, preserva-se essa atividade que, pode despertar
na criança o sentido de humanidade roubado pelo contato constante com a
tecnologia.
Certamente a mídia eletrônica interfere em muito na percepção de mundo.
Quando a história é narrada a criança imagina, cria sua concepção de mundo e
elabora esteticamente os personagens. Na era da comunicação as imagens são
dadas impedindo que haja uma criação ou elaboração de dados que seriam criados
pela mente infantil.
É preciso pensar que a sociedade caminha para uma dependência cada vez
maior do aparato tecnológico. Os games, mini-computadores e celulares
polivalentes e outros tantos engenhos da modernidade interferem em nossa
percepção de realidade.Criam um mundo do individual voltado para uma comunidade
egoísta. Produz-se outra cultura a partir dessa nova forma de se
viver e perceber a vida. Porém o que há de simbólico e humano será sempre
buscado, pois é impossível ao ser humano conviver sem seus símbolos. Os contos
de fada são, em última análise, um compêndio para que a criança entenda o
complicado mundo em que vive rodeado de adultos, que nem sempre são a garantia
de sua proteção e felicidade,
Para o jurista e psicanalista Rodrigo da Cunha Pereira, a primeira Lei é
uma lei de família, uma lei que atribuiu ao ser humano a característica de
poder criar cultura. A necessidade de se instalar regras para o convívio humano
impôs-se de maneira a agrupar os indivíduos não apenas para satisfação básica
de instintos, mas para satisfação da necessidade de afeto. Era a lei do pai.
Daí surgiu o grupo familiar, unido por laços afetivos. E é justamente família o
tema natural e central dos contos de fadas. É desse material que são criados.
Quando num desses contos há a presença de reis e rainhas o simbolismo é
justamente pais e mães como príncipes e princesas são filhos. Na linguagem
coloquial do nosso cotidiano referimo-nos sempre ao simbólico. Ainda que
anacrônica a expressão “rainha do lar”
subsiste bem como “meu rei”, “meu príncipe encantado”, e é comum
ligarmos nossas crianças a príncipes e princesas. Então, existe uma ligação
entre linguagem e contos de fada que é bem clara e que, apesar de toda era
tecnológica, não perdeu sua significação.
A família é a primeira referência de mundo para a criança. Nela se
desenrolam os dramas da existência e nela assimilamos a realidade. Nossa visão
de mundo e percepção ética da vida tem nela sua base. Para a criança, ser
abandonada pelos pais (entes queridos), perder a integridade corporal e a
eliminação do convívio são medos básicos que geram muita ansiedade. Uma prova
disso é que pais que se atrasam para buscar seus filhos nas escolas são
surpreendidos, muitas vezes, com o choro compulsivo e desesperado daqueles
acreditando terem sido esquecidos. Nesse momento o sentimento de perda é vivido
com intensidade. São desses medos e sentimentos que os contos de fada tratam e
que podem ter, por esse motivo, um valor terapêutico. Nesse aspecto ajudam a
criança a conviver e vencê-los. Como equivalentes estão as cantigas de ninar
que falam de bicho-papão em cima do telhado, boi-da-cara-preta que vem pegar
neném, cucas, mas que, na doçura de um acalanto tratam de amenizar esses medos.
Justamente porque falam dos medos na voz de um adulto cuidadoso é que as crianças adormecem sem se apavorarem com personagens macabros pois sabem que esses
monstros não vão tocá-los enquanto se sentirem protegidos.
Vingança, perda,
competição, astúcia, abandono, são acontecimentos do dia a dia que fazem parte
do universo infantil e são bem entendidos à luz da linguagem simbólica que os
contos maravilhosos proporcionam. Por isso, segundo Bruno Betthelheim, “o valor do conto de fadas para a criança é
destruído se alguém detalha os significados...”, pois devem ser
compreendidos ou assimilados através da percepção inconsciente que não pede
explicações formais. Geralmente a criança ouve a história em silêncio e pode,
algumas vezes, solicitar algum esclarecimento que deve ser dado com cuidado
para que o adulto não destrua o significado original da cena ou do personagem.
A pergunta que se pode formular é:- Por
que com toda essa parafernália tecnológica crianças ainda se encantam com
contos de fada? O lobo, a bruxa, a fada povoam a fantasia de crianças pelo
mundo afora. A resposta pode estar no símbolo. Para a Psicanálise o
conhecimento do símbolo é inconsciente e fala diretamente à sensibilidade, ao
subjetivo mais que à razão. Esse fato deve garantir a ampla aceitação por
crianças, (que nunca viram uma fada, castelos, nunca estiveram em florestas ou
enfrentaram lobos ou gigantes), dessas histórias repletas de fantasias e
acontecimentos mágicos.
O material dos contos de fada também é o
material dos sonhos. “Os pais aparecem em
sonhos como imperador e imperatriz, rei e rainha ou outras personagens
respeitadas; com isso, os sonhos evidenciam muito respeito filial. Tratam,
porém com muito menos ternura os filhos, os irmãos e as irmãs: esses são
simbolizados como pequenos animais ou bichinhos”.[3]
Se o material dos contos de fada
refere-se basicamente às relações familiares, devemos lembrar que conflitos
familiares envolvendo
pais e a rivalidade entre irmãos é bastante real e trabalhada, nem tão
simbolicamente assim, Nesse tipo de literatura. Histórias em que o irmão mais
novo é desprezado pelo mais velho, ou que uma irmã é preferida causando inveja,
ou ainda a mãe (ou madrasta) tem claras preferências por sua filha biológica
são temas recorrentes.
Há em alguns deles questões ligadas ao
Direito de Família como quem ficará com a herança. Quem herdará o castelo ou
sucederá ao pai (na função de rei). Esses temas são trabalhados e resolvidos de
maneira a regular as tensões da infância. No final,geralmente, há um resgate da
situação após provas difíceis e complicadas ou de injustiças que são sanadas
num desfecho garantido a felicidade do herói/heroína.
Há uma tendência atual de se reinterpretar
os contos de fada em nome do politicamente correto alegando que pudessem ser
transmissores de preconceitos e visões deturpadas de nossa cultura. A meu ver
um erro. Os contos trazem linguagens milenares percebidas pela criança como
forma de trabalhar dramas interiores pessoais. Ela aprende muito mais pelo
exemplo dos mais velhos que pela palavra, mesmo porque o adulto é moralmente
inconsistente e suas ações são avaliadas pela criança. Dos contos elas absorvem
um mundo simbólico inatingível pela razão. Daí a importância do conhecimento
teórico sobre o tema principalmente por parte dos educadores. Alguns valores
presentes nos contos são geralmente despercebidos por esses críticos .
Solidariedade é um deles. Em várias histórias há exemplos de altruísmo e
bondade. Alguns personagens chegam a desafiar perigos imensos para ajudar ou
salvar entes queridos.
A desconstrução desses textos interfere negativa e diretamente numa
cultura milenar, pois a forma como os conhecemos hoje são transformações de
mitologias antigas. Perrault, Grimm e outros não são exatamente autores dos
contos, mas sim coletores dessas tradicionais formas de relatos que foram
preservados pela tradição oral em função da alfabetização ser pouco disseminada
em eras passadas e também porque faziam parte das atividades domésticas. Os
contos são testemunhas do comportamento humano e da capacidade do ser humano de
trabalhar e resolver conflitos através de recursos lúdicos.
Se por um lado a presença de personagens como Chapeuzinho Vermelho pode
ser interpretada como modelo de submissão e obediência da mulher, por outro há
figuras masculinas que demonstram uma fragilidade inadmissível para uma
sociedade machista herdeira do patriarcalismo. Assim também como figuras
femininas que detem poder vencendo pela astúcia ou pela magia como no caso das
fadas e bruxas e de mulheres que conseguem ludibriar seus maridos gigantes
antropófagos. Figuras masculinas de reis, por exemplo, são personagens que,
geralmente, surgem inseguras, incapazes de reconhecer os ardis de suas esposas
contra personagens infantis podendo ser facilmente enganadas. No caso da
história Irmão , Irmã (ou o gamo encantado) a irmã é quem consegue dominar e
salvar o irmão devolvendo-lhe a forma humana (alterada para um gamo pela
bruxaria) após várias provações mantendo-se fiel a seus princípios morais
enquanto o irmão dá vazão aos instintos naturais incapaz de lidar com a
frustração ou de adiar satisfação (características da vida adulta). Em Os
Cisnes selvagens, é também a irmã quem consegue reverter a situação da
feitiçaria de uma bruxa (madrasta) que o rei/pai não pôde perceber,
transformando seu irmãos em cisnes. Devemos nos lembrar que a figura masculina
é historicamente agressora e os contos espelham o mundo real através do
simbólico. Homens tradicionalmente são os caçadores e intimidadores. Mas nos
contos de fada é possível apresenta-los como aparentes donos da situação, mas
também como seres ingênuos vencidos pela astúcia de meninas frágeis e crianças
sem força física, mas portadores de inteligência e criatividade. Vencer o
adulto pela astúcia, essa seria a grande façanha da infância. Assim, homens e
mulheres são apresentados como detentores de virtudes, mas também de vícios.
A luta do gigante com João (d’o pé de feijão) deixa claro uma relação
familiar, de luta entre o poder do adulto/masculino com a criança,
aparentemente indefesa e a incompreensão materna. Isso se observamos a história
pelo lado simbólico. A família é composta pela mãe e pelo filho - João. Não há
referência a um pai. Mas há a presença de um gigante, enorme e feroz que habita
um outro mundo acima do ambiente dessa família reduzida. Um ser quase divino
habitante das nuvens em um castelo sem ser rei. Mas lá também, nesse ambiente
mitológico há uma esposa que engana através de omissões, o marido (gigante) e
aparentemente é, também, tiranizada por ele. Simbolicamente poderíamos
interpretar essa grande figura ameaçadora masculina como o pai. Em quantas
famílias hoje podemos rever essa dinâmica do marido agressor tendo como vítima
preferencial a mulher? Em um país em que se faz necessária delegacia especializada para mulheres, a história não parece tão fantástica assim. Faz-se necessária até uma lei específica – a Maria da
Penha – para tentar abrandar a situação em pleno século XXI quando essas
temáticas deveriam ser consideradas anacrônicas. No entanto é o pequeno João,
considerado tolo a princípio, quem salva a situação trazendo para a casa o
sustento e a riqueza conseguidos a custa da astúcia e coragem. As duas figuras
masculinas –João e o gigante- representam os dois lados de um mesmo ser. Um
bondoso e carinhoso , o outro terrível e cruel. Um que agride e outro que
provê. É a dualidade de nossas ações demonstrando capacidade para a
criação ou para a destruição.
O Barba Azul, outra história que nos remete a violência do masculino e
da desobediência da mulher. Em muitos contos a heroína desobedece. Assim como no
mito da criação do Gênese, a mulher é apresentada como frágil, passível de ser
levada por paixões ou incapaz de enxergar o perigo. Muitas dessas personagens
abrem portas proibidas (ou comem o fruto proibido) colocando sua vida em risco e despertando a ira do
marido/pai (ou deus) diante da transgressão a uma proibição. No entanto a própria
desobediência é um sinal de não submissão que dispara toda a trama para que ao
final haja o resgate da situação (que não acontece na mitologia cristã. Nela Adão e Eva são condenados ao eterno sofrimento).
O mundo adulto por vezes é um mundo violento. O Barba Azul personifica a crueldade viril histórica do macho alfa.
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O adulto surge nessa literatura muitas vezes como uma ameaça. O escritor
americano Stephen King afirma que “muitos
dos contos de fadas são mal disfarçados ataques contra os pais.” [4]Por
isso mesmo são tão importantes para o universo infantil uma vez que abordam a
questão das relações entre gerações de maneira a visualizá-la sem traumas. Um
exemplo disso está na história de João e Maria.
Abandonados pelos pais para que morra na floresta, a dupla sobrevive graças a astúcia dos personagens. Ainda sobrevivendo ao abandono encontram outro adulto, desta vez na figura da bruxa, com uma promessa de vida melhor (a casa de doces) que se mostra posteriormente como mais um desafio à sobrevivência. Que pais poderiam abandonar seus filhos de maneira tão cruel? A resposta está na realidade de nosso mundo, nas páginas policiais. Adultos são uma ameaça à infância, mas são também, por outro lado, a segurança de uma vida íntegra. Outro exemplo seria a história de Rapunzel. Nela os pais apresentam-se como inescrupulosos ao prometerem a filha a uma bruxa, assim que nascesse, em troca de pequenos desejos maternos que poderiam ser adiados ou evitados. Um adulto deve ser capaz de adiar satisfações ou evita-las caso a situação assim o exija. A importância dos contos de fada é exatamente a capacidade de mostrar à criança a existência do mal de maneira que ela possa assimilar esses aspectos por demais verdadeiros e presentes no seu cotidiano sem traumas. As crianças precisam acreditar que os adultos têm controle sobre seus impulsos para a violência e que têm uma concepção clara do que é certo e errado[5]. Assim, o exemplo de comportamentos inadequados por parte de um adulto nesses contos aponta para uma interpretação, por parte da criança, de um mundo incoerente que por algumas vezes oferece perigo a sua existência sem, contudo questionar a autoridade que o adulto deve ser.
Abandonados pelos pais para que morra na floresta, a dupla sobrevive graças a astúcia dos personagens. Ainda sobrevivendo ao abandono encontram outro adulto, desta vez na figura da bruxa, com uma promessa de vida melhor (a casa de doces) que se mostra posteriormente como mais um desafio à sobrevivência. Que pais poderiam abandonar seus filhos de maneira tão cruel? A resposta está na realidade de nosso mundo, nas páginas policiais. Adultos são uma ameaça à infância, mas são também, por outro lado, a segurança de uma vida íntegra. Outro exemplo seria a história de Rapunzel. Nela os pais apresentam-se como inescrupulosos ao prometerem a filha a uma bruxa, assim que nascesse, em troca de pequenos desejos maternos que poderiam ser adiados ou evitados. Um adulto deve ser capaz de adiar satisfações ou evita-las caso a situação assim o exija. A importância dos contos de fada é exatamente a capacidade de mostrar à criança a existência do mal de maneira que ela possa assimilar esses aspectos por demais verdadeiros e presentes no seu cotidiano sem traumas. As crianças precisam acreditar que os adultos têm controle sobre seus impulsos para a violência e que têm uma concepção clara do que é certo e errado[5]. Assim, o exemplo de comportamentos inadequados por parte de um adulto nesses contos aponta para uma interpretação, por parte da criança, de um mundo incoerente que por algumas vezes oferece perigo a sua existência sem, contudo questionar a autoridade que o adulto deve ser.
[1] Bruno
Bettelheim, A Psicanálise dos ontos de Fada – Paz e Terra - 1980
[2]
Gilberto Freire in Casa Grande e Senzala – paginas
[3]
Freud, Sigmund. Obras completas páginas 183, 184 – volume XV.
[4] Stephen King Dissecando Stephen
King - 1995
[5] Neil Postman
– O desaparecimento da Infância – 1999 Ed. Graphia
Perrault, Charles. _ Contos de Perraul - 1994 Ed. Vila Rica
Perrault, Charles. _ Contos de Perraul - 1994 Ed. Vila Rica
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