Dizem que as velhas bruxas, que se escondem nas grutas solitárias, não incomodam mais a gente. Por que será ?
Só Adrião o sabe, mas Adrião não conta a ninguém, pois tem medo que seu nariz fique de palmo e meio. E como é que Adrião o sabe?
Aí é que está a história.
Adrião era um pastor muito valente que vivia à guardar os seus rebanhos ao pé da Montanha Negra.
Um dia — era ele mocinho — ficou procurando um carneirinho que desaparecera de repente, procurando, procurando, até que, desanimado de achá-lo, resolveu voltar para casa.
Adrião olhou para as estrelas e viu que já era perto de meia-noite. A noite estava muito escura.
Meia-noite era a hora era em que as bruxas costumavam sair das cavernas. Adrião ia a caminho de casa, quando, ao passar perto de uma caverna, ouviu algumas vozes estranhas e o barulho de cabos de vassoura.
— Quem poderá andar por aqui, por estas horas? disse Adrião consigo mesmo.
Adrião olhou em roda, mas não viu ninguém.
— Ah! E se fossem as bruxas? — disse ele — É hora delas saírem.
Adrião escondeu-se numa moita de capim e pôs-se a escutar.
Pouco a pouco, as bruxas foram saindo da caverna nos seus cavalinhos de pau, que eram cabos de vassouras.Elas foram indo pelo ar e cantavam:
— No cabo desta vassoura
Pelo dom desta hora,
Vamos pelo mundo afora.
Voaram até as nuvens, mas algumas ficaram perto da caverna, e uma gritou:
— Carne humana! Estou sentindo cheiro de carne humana! Há uma pessoa por aqui perto de nós.
Adrião pensou, pensou.
— E esta agora? As bruxas acabam por me descobrir e…
Uma bruxa deixou seu cabo de vassoura e deu volta à gruta, à procura de alguém.
Adrião, então, pegou o cabo de vassoura, montou nele e saiu voando. Adrião foi voando também, porque o seu cabo de vassoura o carregava.
As bruxas voavam e cantavam, e Adrião foi voando e cantando atrás delas:
— No cabo desta vassoura.
Pelo dom desta hora,
Vamos pelo mundo afora.
Voando, cantando, as bruxas atravessaram as florestas, os mares, as montanhas, até que chegaram aos. países gelados do Norte. Passaram pela Dinamarca, pela Suécia e pela Noruega e foram dar à Lapônia. Viram, no meio de salgueiros brancos de neve, um castelo coberto de neve. Havia luz lá dentro.
Devia de ser bem quentinho. Resolveram entrar nele e para ele se dirigiram.
Adrião viu uma porção de guardas, muito bem armados, ao redor do castelo, e disse consigo:
— E agora? Essas bruxas passarão, mas e eu, que não sou bruxa? Que vai ser de mim?
Adrião, porém, não sabia que, quando era preciso, o cabo de vassoura o tornava invisível como as bruxas, e, por isso, ficou espantado de ouvir os guardas gritar, quando passaram no meio deles:
— Irra! que ventania!
Os salgueiros sacudiram seus galhos com violência, e os guardas seguraram os capacetes com a mão, para não voarem.
As bruxas passaram no meio dos guardas e chegaram perto do grande portão de ferro, que estava fechado com sete chaves.
— E agora? Como é que vou passar?
Entretanto, as bruxas iam entrando pelos buracos da fechadura e Adríão também.
Foram direitinho à adega, sentaram-se em torno de uma larga mesa e ali comeram as melhores comidas e beberam os melhores vinhos.
Fartas de beber e comer, puseram-se de volta.
No cabo desta vassoura,
Antes que venha a aurora.
Antes que passe a hora,
Vamos, vamos embora…
Voaram, cantando, chegaram cantando, e, antes adentrarem nas suas cavernas, uma bruxa disse a Adríão:
— Adrião, bico calado! Não diga uma palavra do que viu, senão o seu nariz crescerá palmo e meio.
Adrião não sabe o que se passou depois.
Quando acordou, o sol já ia alto, e o seu chapéu de palha ia rolando pela montanha abaixo, levado pela brisa fresca da manhã.
Adrião olhou ao redor e não viu nada.
Só, ali perto, o carneirinho, que lhe dera tanto trabalho comia a relva verde e tenra da encosta da Montanha Negra.
Adrião lembrou tudo o que acontecera de noite pôs a mão no nariz para ver se continuava do mesmo tamanho. O nariz era o mesmo. Não contaria nada ninguém.
OBS: Esta história tem um elemento diferenciado de outras sobre bruxas. A atitude delas é inusitada quando não questionam o comportamento de Adrião. O tempo todo sabiam, parece, da presença dele e deixaram que desfrutasse de toda a aventura. É como se elas tivessem dado um “bem-vindo ao clube” e criado uma cumplicidade camarada. A marginalidade é por vezes algo excitante e sedutor. Ambas as partes estavam, digamos assim, perdidos na noite. Isso criou essa cumplicidade que favoreceu um prazer momentâneo, como acontece com a alteração do estado de consciência, quando um grupo se une para tal finalidade. Essa característica desse conto garante de alguma forma uma identificação com a “marginalidade” das bruxas que não fazem mal a ninguém e têm momentos de prazer compartilhado com pessoas do mesmo grupo. É uma espécie de comunhão. A única exigência é o pacto do silêncio. Adrião passou na verdade por um aprendizado fantástico, na verdade um privilégio. As bruxas, sempre tão mal vistas, dessa vez se mostraram camaradas e com um elemento muito pertinente para a humanidade – tolerantes. Adrião teve uma lição de tolerância descobrindo que o prazer compartilhado é um bem para o espírito.Imagino que essa mensagem passada sutilmente para a criança, de alguma forma faz com que ela reaja positivamente perante alguns momentos da vida. A identificação com o herói faz com que a história seja mais interessante tornando-a fascinante perante os olhos infantis.
Adrião é o herói marginal. Marginal porque se manteve na clandestinidade, porque se uniu a um grupo depreciado pela maioria moral. Seu comportamento não pôde ser aberto. De alguma maneira foi uma transgressão. E se formos pensar que essas histórias estão recheadas de elementos da Idade Média (bruxa é uma preocupação da igreja) , Adrião fez parte de um grupo de resistência.
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