A verdadeira moral da
história
O segredo do sucesso dos contos de fadas é o seu poder de estimular
nosso inconsciente. Entenda as entrelinhas psicológicas dos clássicos que mexem
com crianças e adultos
Texto Emiliano Urbim
Era uma vez uma aldeia onde os moradores passavam
as noites contando e ouvindo histórias. As preferidas eram aquelas com enredos
fabulosos, mas que despertavam sensações reais, confusas, secretas. Ao redor do
fogo circulavam contos sobre bruxas e princesas, belas e feras, meninas e
lobos, onde sobravam fome, medo, vingança e morte. E ao final, nem sempre
feliz, alguém sempre pedia: “Conte outra vez”.
Em aldeias como essa, de histórias como essas,
surgiram os contos de fadas (batizados por uma senhorinha francesa insensível
ao fato de que a maioria nem fada têm). Os originais medievais eram destinados
a ouvintes de todas as idades, mas, uma vez eleitos favoritos da infância
burguesa, foram sendo sucessivamente amenizados até chegarem às atuais versões
“censura livre”.
Essas narrativas são um patrimônio abstrato da
humanidade, passado adiante via voz, livros, rádio, TV, internet – e, para quem
está na faixa dos 30, vinis coloridos. “Isso é absolutamente surpreendente num
mundo cada vez mais mutante”, afirma o casal Diana Lichtenstein Corso e Mário
Corso no livro Fadas no Divã, onde fazem uma análise psicológica das histórias
infantis. “Como esses restos do passado vieram parar nas mãos da crianças de
hoje?”, perguntam os psicanalistas.
Nos anos 70, o austríaco Bruno Bettelheim emplacou
a tese de que os contos que sobreviveram são aqueles que mais mexem com o
inconsciente de narradores e ouvintes. Uma seleção natural favoreceu as
histórias que reverberam na mente, que trazem nas entrelinhas questões
emocionais, sexuais, familiares, universais. “No conto de fadas, o paciente
encontra soluções analisando as partes da história que dizem respeito a seus
conflitos”, escreve em A Psicanálise dos Contos de Fadas. Preservamos a história
de Chapeuzinho não porque ela ensina a ter cuidado com estranhos, mas pelos
sentimentos estranhos que ela provoca.
Nas próximas páginas, mostramos que a interpretação
de clássicos como Branca de Neve, Patinho Feio e Cinderela pode ser reveladora,
tanto para quem já perdeu o medo do lobo quanto para quem ainda espera pelo
príncipe encantado.
Chapeuzinho Vermelho
Versão condagrada – A pedido da mãe, uma menina
deve atravessar um matinho sinistro pra levar comida até a casa da vó doente.
No caminho, Chapeuzinho é abordada por um lobo, que lhe indica um desvio longo
enquanto pega um atalho até a casa da velhinha e a devora sem dó. Chegando lá,
Chapeuzinho trava um diálogo recheado de duplos sentidos e também é comida. Eis
que um caçador salva o dia, tirando avó e neta da barriga do lobo.
Outra história – Na versão compilada por Perrault em 1697, a menina e a velhinha morriam. Foram os Grimm, que, 160 anos depois, tiraram o caçador do chapéu. O final varia, mas mantém-se o sugestivo diálogo que começa com “pra que esses olhos tão grandes?” e termina com “pra te comer melhor!” Existe uma versão anterior à tradicional, que inclui canibalismo (a menina bebe o sangue e come a carne da avó), strip-tease e até sugestão de golden shower. Sim, o lobo pede que a menina urine sobre ele.
Interpretação – Uma questão recorrente é por que
Chapeuzinho dá trela ao lobo? “Ela é uma criança com a ingenuidade de quem não
sabe sobre o sexo. Ela pode não saber que jogo está sendo jogado, mas é
inegável seu interesse em participar”, escrevem os autores de Fadas no Divã.
Esse caminho interpretativo leva ao campo minado da sexualidade infantil.
Segundo Freud, nossas primeiras experiências sexuais são encobertas por uma
espécie de amnésia que vai até os 6 ou 8 anos. A história teria sobrevivido por
usar símbolos que nos fazem pensar nessa questão. Ou seja: o conto não fala
apenas sobre o perigo do desconhecido, mas sobre a perda da inocência.
Para maiores – No sexo, há adultos que agem como uma menina diante de um lobo. “Quando a vida lhes impõe um papel sexual, vão oferecer o que têm: sua ingenuidade. Ser uma assustada Chapeuzinho é até onde vai a sexualidade de quem não quer saber nada do assunto”, escreve o casal Corso.
Branca de Neve
Versão consagrada Sentenciada à morte por ser mais
bela que a madrasta, Branca escapa e é acolhida por 7 anões. Mas a megera não
sossega: disfarçada de bruxa, encontra a rival e lhe dá uma maçã envenenada. A
jovem entra em coma, mas o beijo de um príncipe lhe devolve a vida. A madrasta
é punida com a morte.
Outra história – Apenas no filme da Disney os anões ganharam personalidades distintas.
Interpretação – Em contos de fadas, madrasta é
apenas um nome feio para mãe – neste caso, uma mãe que inveja a filha que vira
mulher enquanto ela envelhece. Repare: o conflito só começa depois que o
espelho informa que a madrasta não é mais a nº 1 do reino – a identidade
feminina da adolescente Branca de Neve já está em construção. E a obra se
completa com um leve toque de machismo: assim como a Bela Adormecida, ela só conquista
o príncipe semimorta – ou seja, inerte, quietinha, comportada, como se espera
de uma boa moça.
Para maiores – Todo namorado tem um pouco de “espelho, espelho meu”, constantemente requisitado a confirmar que, sim, a parceira é a mais linda e, não, não existe mais ninguém. E que ele a ama. Pra sempre. De verdade.
Patinho Feio
Versão consagrada – Banido do ninho por deficiência
estética, o Patinho enfrenta doses variadas de rejeição administradas por
humanos e animais. Ao final, entre iguais, descobre que não era um pato feio,
mas um lindo cisne.
Outra história – Diferentemente da maioria dos contos de fadas, compilados do folclore europeu, este é uma criação do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875).
Interpretação – O mérito do conto é mexer com o
senso de deslocamento comum a toda criança. Todo mundo, em algum momento, sente
que está no lugar errado, seja a família, seja a escola, a turma, o mundo. Por
outro lado, permite aos pais viver na ficção o pavor de ter o filho surrupiado.
Para maiores – Alguns carregam o “complexo de patinho feio” para além da infância, achando-se eternamente rejeitados e deslocados. Especula-se inclusive que Andersen tenha feito o conto refletindo seus problemas de auto-estima.
João e o Pé de Feijão
Versão consagrada – Em vez de vender uma vaca como
sua mãe pediu, João topa com um açougueiro/engenheiro genético e troca a mimosa
por feijões mágicos. Leva um esporro, mas as sementes crescem até o céu, onde
João encontra um gigante, de quem rouba vários tesouros. Durante perseguição ao
meliante, o grandão cai lá de cima e morre. João e a mãe vivem ricos e felizes
para sempre.
Outra história – Na primeira versão (1807), João sobe aos céus para vingar o pai, um cavaleiro morto pelo gigante.
Interpretação – Cavaleiro, açougueiro, gigante:
todos são faces do mesmo pai. A trajetória de João reflete o processo natural
(mais para homens, menos para mulheres) de assimilar características e desejos
da figura paterna na construção da própria personalidade – inclusive se
distanciando um pouco da mãe.
Para maiores – Há caçulas que passam a vida tratando irmãos mais velhos como gigantes – para o bem e para o mal.
O Príncipe Sapo
Versão consagrada – Uma princesa mimada maltrata um
sapo e é obrigada a dividir cama e mesa com o batráquio. Depois de um tempo,
ela acaba caindo pelos encantos do bicho. E, assim que os dois se beijam, num
passe de mágica, ele vira um príncipe.
Outra história A versão original não tem beijo: o
sapo se transforma após ser jogado na parede.
Interpretação – Diferentemente de histórias que terminam no casamento, esta e A Bela e a Fera lidam com o complexo “depois”. O nojinho da princesa com o ser viscoso pode simbolizar o incômodo das crianças com o sexo, ou simplesmente com relacionamentos fora da família – ambos redimidos ao final do conto.
Para maiores – Essa princesa é da linhagem das “megeras domadas”, que esperneiam, mas ao fim se submetem ao papel passivo reservado a elas.
Cinderela
Versão consagrada – A madrasta e as meias-irmãs de
Cinderela lhe delegam o trabalho doméstico, na esperança de que o batente a
embarangue. Mas chega o baile real. Repaginada por fadas, Cinderela brilha e
conquista o príncipe, que guarda da noite um sapatinho de cristal, abandonado
pela bela enquanto fugia em desabalada corrida. O príncipe sai calçando todas
em busca da dona do sapato, até dar com o pé de Cinderela e ambos viverem
felizes para sempre.
Outra história – Há versões em que as irmãs
invejosas são cegadas por aves amigas de Cinderela.
Interpretação – Na superfície temos a fantasia dos adolescentes de que a sua vida não pode ser a real: existe um destino melhor, que lhe pertence e que lhe foi roubado, simbolizado na história pelo príncipe. “Essa história permite uma empatia imediata de qualquer filho, já que cada um se sentirá demasiado injustiçado e exigido, assim como pouco amado. Acreditamos que daí provém seu sucesso”, escrevem Diana e Mário Corso. “Onde houver irmãos, haverá desigualdade de fato ou a suposição de que ela existe.” Como costuma acontecer, a figura materna é multifacetada: é a mãe bondosa que foi, a madrasta exigente e a fada que inspira sonhos. Quanto àquele sapatinho, sim, ele pode ser interpretado como um traço de fetichismo, uma dica precoce de que alguns elementos podem valer muito no jogo da sedução.
Para maiores – “A história de Cinderela é constantemente reciclada, em séries como Sex and the City e boa parte das comédias românticas”, diz Maria Tatar, folclorista da Universidade Harvard e autora de Contos de Fadas: Edição Comentada e Ilustrada. A personagem também une fantasias masculinas geralmente conflitantes: a princesa para casar e a serviçal para… bem, servir. “Cinderela persiste na fantasia feminina. Independentemente da mulher forte e capaz que ela se mostre no mundo, Cinderela será a que, na intimidade, se disponha a brincar de esconde-esconde”, afirmam os autores de Fadas no Divã.
Nenhum comentário:
Postar um comentário