domingo, 7 de maio de 2017

Uma história sobre como surgem as histórias


Uma história sobre como surgem as histórias





Não seria grande surpresa encontrar quem pense que os contos de fadas foram inventados pela Disney. Espera-se, porém, que a maioria saiba que são mais antigos. Mas quanto mais?
Ilustrações e desenhos animados tendem a reproduzir roupas e cenários do século XVIII ou XIX, porque as versões hoje mais populares vêm das coletâneas editadas por Charles Perrault (1628-1703), pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm (1785-1863 e 1786-1859, respectivamente) e por Christian Andersen (1805-1875), mas estas foram baseadas em narrativas orais recolhidas de tradições transmitidas entre gerações desde tempos imemoriais.
A presença de castelos, princesas, bruxas, dragões, florestas e cavaleiros dá a muitas dessas histórias um sabor medieval e muitos autores a discuti-las ou reescrevê-las presumiram ser elas originadas dessa época. 
Entretanto, em 20 de janeiro, a pesquisadora Sara Graça da Silva, da Universidade Nova de Lisboa e seu colega Jamshid J. Tehrani, da Universidade de Durham, publicaram um artigo intitulado “Análise filogenética comparativa descobre as antigas raízes de contos indo-europeus” no qual demostram ser alguns desses contos bem mais antigos. Mais velhos do que a mitologia greco-romana clássica, o Antigo Testamento ou qualquer língua registrada por escrito.
Análise filogenética é propriamente o estudo da relação evolutiva entre grupos de organismos por métodos quantitativos. Os autores dizem ter aplicado métodos inicialmente desenvolvidos pela biologia para analisar as relações entre contos, histórias das populações e distâncias geográficas e encontrado fortes correlações filogenéticas, mas não espaciais, indicando a predominância de processos verticais de herança cultural sobre os empréstimos colaterais.
Comparando-se as versões de um conto, pode-se, assim, reconstruir sua árvore genealógica, assim como se reconstrói a evolução de um gênero de espécies animais desde o século XIX de Charles Darwin, de uma família de línguas desde os pioneiros da linguística histórica no século XVIII ou das diferentes versões de um texto clássico ou bíblico desde os humanistas do Renascimento.
Em alguns casos, como suspeitava Wilhelm Grimm, mas duvidavam a maioria dos pesquisadores modernos, sua origem praticamente coincide com a das línguas indo-europeias.
O conto do qual se encontraram as raízes mais antigas é aquele conhecido como “O Ferreiro e o Demônio”, no qual o protagonista vende a alma a uma entidade maligna para obter um poder sobrenatural sobre os metais e então o usa para aferrolhar o ser diabólico e forçá-lo a desistir de sua parte da barganha.
Uma das evoluções modernas desse conto é, provavelmente, o Fausto de Johann Wolfgang von Goethe (1808), baseado em uma lenda registrada por escrito desde o século XVI. Mas a árvore filogenética construída pelos autores indica uma origem anterior a 4.000 a.C. e à própria metalurgia do ferro.
Provavelmente surgiu entre os primeiros pastores indo-europeus a dominar a metalurgia do bronze, na atual Ucrânia, antes que as grandes pirâmides fossem construídas. Foi contada pela primeira vez em uma língua há muito esquecida antes de ser repetida e modificada pelos descendentes desses pastores que se espalharam da Europa Ocidental à Índia.
Um tanto menos antigos são os contos “O Menino que Roubou o Tesouro do Ogro”, do qual derivam histórias como “João e o Pé de Feijão”,  o famoso “A Bela e a Fera” e “O Nome do Ajudante”, hoje mais conhecido como “Rumpelstiltskin”. Suas variantes são encontradas na maioria das comunidades linguísticas da Europa, de Portugal à Rússia, mas não nas línguas indo-iranianas.
Isso indica uma origem após a separação entre esses dois ramos culturais e linguísticos, mas antes de as línguas europeias divergirem nas subfamílias hoje conhecidas como eslava, germânica, celta e latina, por volta de 3.000 a.C.
Seria interessante descobrir se esse método pode ser levado ainda mais longe a ponto de detectar histórias criadas antes da separação entre a família indo-europeia e outras grandes famílias linguísticas, ou seja, na Idade da Pedra. E esclarecer se a semelhança com essas histórias e outras encontradas em culturas não indo-europeias é devida a origens comuns pré-históricas, influências mútuas ou casuais.
A coletânea A Bela e a Fera ao Redor do Globo, de Betsy Hearne (Companhia das Letrinhas, 2013), lista 27 contos mais ou menos similares, alguns dos quais recolhidos de culturas não indo-europeias, inclusive indígena norte-americana (“O Velho Coiote”), africana (“A História das Cinco Cabeças”), japonesa (“O Genro Macaco”), chinesa (“A Serpente Encantada”), turca (“A Princesa e o Porco”) e indonésia (“O Marido Lagarto”).
Entretanto, a ideia de que as semelhanças entre contos e mitos de diferentes culturas se devem a arquétipos inatos, gravados nos genes ou no mundo das ideias platônicas, pode desde já ser relativizada e questionada. É bem possível que tenham se difundido a partir de uma origem histórica ou pré-histórica definida, ao longo de peripécias tão interessantes quanto o próprio conto.

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