Não seria grande surpresa encontrar quem pense que os contos de fadas foram
inventados pela Disney. Espera-se, porém, que a maioria saiba que são mais
antigos. Mas quanto mais?
Ilustrações e desenhos animados tendem a reproduzir roupas e cenários do
século XVIII ou XIX, porque as versões hoje mais populares vêm das coletâneas
editadas por Charles Perrault (1628-1703), pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm
(1785-1863 e 1786-1859, respectivamente) e por Christian Andersen (1805-1875),
mas estas foram baseadas em narrativas orais recolhidas de tradições
transmitidas entre gerações desde tempos imemoriais.
A presença de castelos, princesas, bruxas, dragões, florestas e cavaleiros
dá a muitas dessas histórias um sabor medieval e muitos autores a discuti-las
ou reescrevê-las presumiram ser elas originadas dessa época.
Entretanto, em 20 de janeiro, a pesquisadora Sara Graça da Silva, da
Universidade Nova de Lisboa e seu colega Jamshid J. Tehrani, da Universidade de
Durham, publicaram um artigo intitulado “Análise
filogenética comparativa descobre as antigas raízes de contos indo-europeus”
no qual demostram ser alguns desses contos bem mais antigos. Mais velhos do que
a mitologia greco-romana clássica, o Antigo Testamento ou qualquer língua
registrada por escrito.
Análise filogenética é propriamente o estudo da relação evolutiva entre
grupos de organismos por métodos quantitativos. Os autores dizem ter aplicado
métodos inicialmente desenvolvidos pela biologia para analisar as relações
entre contos, histórias das populações e distâncias geográficas e encontrado
fortes correlações filogenéticas, mas não espaciais, indicando a predominância
de processos verticais de herança cultural sobre os empréstimos colaterais.
Comparando-se as versões de um conto, pode-se, assim, reconstruir sua árvore
genealógica, assim como se reconstrói a evolução de um gênero de espécies animais
desde o século XIX de Charles Darwin, de uma família de línguas desde os
pioneiros da linguística histórica no século XVIII ou das diferentes versões de
um texto clássico ou bíblico desde os humanistas do Renascimento.
Em alguns casos, como suspeitava Wilhelm Grimm, mas duvidavam a maioria dos
pesquisadores modernos, sua origem praticamente coincide com a das línguas
indo-europeias.
O conto do qual se encontraram as raízes mais antigas é aquele conhecido
como “O Ferreiro e o Demônio”, no qual o protagonista vende a alma a uma
entidade maligna para obter um poder sobrenatural sobre os metais e então o usa
para aferrolhar o ser diabólico e forçá-lo a desistir de sua parte da barganha.
Uma das evoluções modernas desse conto é, provavelmente, o Fausto de
Johann Wolfgang von Goethe (1808), baseado em uma lenda registrada por escrito
desde o século XVI. Mas a árvore filogenética construída pelos autores indica
uma origem anterior a 4.000 a.C. e à própria metalurgia do ferro.
Provavelmente surgiu entre os primeiros pastores indo-europeus a dominar a
metalurgia do bronze, na atual Ucrânia, antes que as grandes pirâmides fossem
construídas. Foi contada pela primeira vez em uma língua há muito esquecida
antes de ser repetida e modificada pelos descendentes desses pastores que se
espalharam da Europa Ocidental à Índia.
Um tanto menos antigos são os contos “O Menino que Roubou o Tesouro do
Ogro”, do qual derivam histórias como “João e o Pé de Feijão”, o famoso
“A Bela e a Fera” e “O Nome do Ajudante”, hoje mais conhecido como
“Rumpelstiltskin”. Suas variantes são encontradas na maioria das comunidades
linguísticas da Europa, de Portugal à Rússia, mas não nas línguas
indo-iranianas.
Isso indica uma origem após a separação entre esses dois ramos culturais e
linguísticos, mas antes de as línguas europeias divergirem nas subfamílias hoje
conhecidas como eslava, germânica, celta e latina, por volta de 3.000 a.C.
Seria interessante descobrir se esse método pode ser levado ainda mais longe
a ponto de detectar histórias criadas antes da separação entre a família
indo-europeia e outras grandes famílias linguísticas, ou seja, na Idade da
Pedra. E esclarecer se a semelhança com essas histórias e outras encontradas em
culturas não indo-europeias é devida a origens comuns pré-históricas,
influências mútuas ou casuais.
A coletânea A Bela e a Fera ao Redor do Globo, de Betsy Hearne
(Companhia das Letrinhas, 2013), lista 27 contos mais ou menos similares,
alguns dos quais recolhidos de culturas não indo-europeias, inclusive indígena norte-americana
(“O Velho Coiote”), africana (“A História das Cinco Cabeças”), japonesa (“O
Genro Macaco”), chinesa (“A Serpente Encantada”), turca (“A Princesa e o
Porco”) e indonésia (“O Marido Lagarto”).
Entretanto, a ideia de que as semelhanças entre contos e mitos de diferentes
culturas se devem a arquétipos inatos, gravados nos genes ou no mundo das
ideias platônicas, pode desde já ser relativizada e questionada. É bem possível
que tenham se difundido a partir de uma origem histórica ou pré-histórica definida,
ao longo de peripécias tão interessantes quanto o próprio conto.
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