Bruno Bettelheim
e a psicanálise dos contos de fadas
Para psicólogo austro-americano, violência e tabus
contidos nessas narrativas tinham poder de atração sobre as crianças por seu
conteúdo humano e por simbolizarem a saga do herói, correspondente ao
desenvolvimento delas próprias
Nascido em Viena no início do século passado, o psicanalista
austro-americano Bruno Bettelheim (1903-1990) é originário de numa família
judia da alta burguesia. Entrou na universidade para fazer um curso que passava
pela literatura, pela história da arte e pela estética. Em sua tese de fim de
curso, já demonstrava interesse pela psicanálise: procurou integrar uma
abordagem psicanalítica da arte com uma interpretação filosófica do belo. A
partir de 1932, uniu-se a psicanalistas vienenses que se interessavam pelo
tratamento de crianças. A primeira e a segunda esposas de Bettelheim eram
discípulas da médica e pedagoga italiana Maria Montessori (1870-1952).
Em 1938, foi deportado pelos nazistas para um campo de concentração,
onde passou um ano sendo violentamente espancado. Essa experiência desumana o
marcou profundamente, e, segundo seu relato, nunca foi superada por completo.
Depois de liberado, Bettelheim foi morar nos Estados Unidos. A partir de
1943, ligou-se à Escola Ortogênica de Chicago, que dirigiu durante cerca de
trinta anos e que acolhia crianças classificadas como autistas. De inspiração
psicanalítica, esse instituto, no entanto, tinha aspectos paradoxais, pois se
chocava com os próprios princípios psicanalíticos de abertura para o exterior e
de autonomização dos indivíduos.
Dizia-se um homem do trabalho de campo, mais clínico do que teórico: um
clínico cuja prática se inspirava, sobretudo, em princípios filosóficos. Ele
afirmava publicamente que tinha plena consciência dos limites de seu saber.
Também postulava uma “cura relativa” de seus pacientes, valorizando todos os
avanços obtidos por eles, ainda que considerados pequenos aos olhos da
sociedade.
Depois que se desligou da Escola Ortogênica, aposentado, continuou muito
ativo, escrevendo diversos livros – entre os quais Psicanálise dos contos de
fadas, obra inspirada nos relatórios que produziu a respeito dos casos que
atendeu e que se tornou um best-seller mundial, bastante conhecida inclusive
por educadores brasileiros. Fazia conferências e participava de programas de
rádio e televisão. Obteve grande fama na mídia dos Estados Unidos e do resto do
mundo, inspirador de adesões apaixonadas e alvo de violentas polêmicas.
A psicanálise dos contos de fadas
Recusando tanto o dogmatismo teórico da IPA (International
Psychoanalytical Association) quanto o pragmatismo dos psicanalistas
norte-americanos (partidários de uma psicologia adaptacionista), Bettelheim
afirmava que as crianças de quem estava encarregado deviam ser tratadas com
respeito. Concebeu um “universo terapêutico total”, que fez de seu trabalho um
combate permanente, cujo fim – a saída do isolamento no qual as crianças
autistas tinham encontrado refúgio – devia justificar os meios. Utilizou
técnicas de trabalho ainda pouco valorizadas, como a leitura de contos de fadas
para as crianças internadas.
No livro Psicanálise dos contos de fadas, Bettelheim
apresentou as histórias como eram contadas em seus primeiros registros, com a
presença da violência quase brutal e dos tabus, como o do incesto. Seguindo as
ideias freudianas, afirmava que essa violência é inerente ao ser humano e, por
isso, atrai tanto a atenção das crianças. Isso explicaria, por exemplo, por que
o lobo fascina tanto os pequenos.
O conto de fadas recriava, também, a saga do herói: a busca das origens,
o enfrentamento de problemas, a superação dos obstáculos e a obtenção da glória
e do sucesso. Essa jornada demonstraria o desenvolvimento interior da criança e
os rituais de passagem em suas diversas etapas de desenvolvimento.
Para Bettelheim, essas ficções ajudavam a criança a recriar internamente
seus próprios dramas pessoais, pois permitiam que elas se imaginassem na
história e aprendessem a lidar com seus conflitos interiores. Por meio dessas
narrativas, a criança vislumbrava maneiras de lidar com seus medos, suas
falhas, assim como de resolver as questões que se colocavam como obstáculos
para seu desenvolvimento.
Algumas ideias desenvolvidas por Bruno Bettelheim
A criança esquizofrênica
Nos Estados Unidos, o diagnóstico de esquizofrenia era aplicado na
maioria dos casos de psicose, quer se tratasse de adultos ou de crianças.
Esquizofrenia era sinônimo de delírio e de insanidade aguda ou crônica. Mesmo
sabendo que um diagnóstico nunca abrangia a riqueza da complexidade clínica,
Bettelheim adotou essa classificação, distinguindo três tipos de esquizofrenia:
– No nível mais baixo, o sujeito deixa de agir por si e
também não reage a seu meio. Desinveste todos os aspectos da realidade interna
e externa. É o caso da criança autista muda.
– No nível intermediário situa-se o sujeito que, até certo ponto, ainda age, embora seus atos não estejam de acordo com suas tendências inatas. Todos os seus atos são motivados pela angústia de morte, onipresente em sua realidade interna. Como ele retira o investimento da realidade externa, não pode haver uma interação com essa realidade. É o caso da criança autista não muda.
– No terceiro nível da esquizofrenia, encontra-se o sujeito que age, sobretudo, em função de uma realidade externa superinvestida, como prisioneiro de um combate extremamente violento com o mundo externo, que parece hostil e esmagador. Para Bettelheim, essa é a forma menos grave de esquizofrenia.
– No nível intermediário situa-se o sujeito que, até certo ponto, ainda age, embora seus atos não estejam de acordo com suas tendências inatas. Todos os seus atos são motivados pela angústia de morte, onipresente em sua realidade interna. Como ele retira o investimento da realidade externa, não pode haver uma interação com essa realidade. É o caso da criança autista não muda.
– No terceiro nível da esquizofrenia, encontra-se o sujeito que age, sobretudo, em função de uma realidade externa superinvestida, como prisioneiro de um combate extremamente violento com o mundo externo, que parece hostil e esmagador. Para Bettelheim, essa é a forma menos grave de esquizofrenia.
A criança autista
Para o pensador vienense, o autismo se originaria no encontro defeituoso
de um ser com o mundo externo, nos primeiros dois anos de vida. Durante esse
período, são os familiares, e mais especialmente a mãe (ou quem ocupa esse
lugar), que representam o mundo circundante aos olhos da criança. Para que a
criança pequena sinta o desejo de se relacionar com esse mundo, e para que
possa desenvolver sua personalidade, suas primeiras trocas e contatos devem se
colocar sob o signo da mutualidade.
O psicanalista entendia mutualidade como a relação em que um age com o
outro, manifestando sua maneira de ser. Segundo ele, a falta de mutualidade no
encontro com a realidade externa constituía o fator principal de retraimento
autístico, temporário ou crônico, da criança pequena. Bettelheim atribuiu as consequências
da falta de mutualidade pelo lado da mãe, ou de quem ocupava o lugar materno
(por exemplo, os cuidadores nos berçários ou os substitutos maternos quando a
criança era privada do contato materno por guerras ou perdas precoces).
Diante dessa falha materna, a criança pequena viveria a experiência
traumática de que seus atos não exerciam nenhuma influência no comportamento da
mãe. Suas tentativas de transmitir seus afetos, manifestar suas necessidades e
receber uma resposta que ela considera apropriada eram inúteis. Então, para
ficar distante da angústia de morte, a criança manteria a imutabilidade de seu
mundo interno.
Dessa forma, a criança autista estava alienada numa lógica de
sobrevivência. O fechamento de si mesma a protegeria da agressividade do mundo
externo. Em seus tratamentos, Bettelheim propunha que a criança autista pudesse
viver a experiência de uma mutualidade que faltou no passado, encontrar razões
para agir sobre o mundo e desenvolver sua personalidade. Tratava-se de propor à
criança um mundo em que ela pudesse entrar em pé de igualdade com o outro. Um
mundo que se adaptasse à sua loucura e aos seus sintomas, que eram para ela uma
necessidade de sobrevivência.
Dificuldades do fim
No final da vida, aos 87 anos, problemas graves de saúde levaram-no a
restringir consideravelmente suas atividades. A morte de sua mulher também o
abalou profundamente. Bruno Bettelheim pôs fim à própria vida, asfixiando-se
com um saco plástico amarrado a uma borracha.
Um grande escândalo estourou nos Estados Unidos algumas semanas depois
de sua morte. Em consequência da publicação, em alguns grandes jornais, de
cartas de ex-alunos da Escola Ortogência de Chicago, a imagem do bom “Dr. B.”,
como era chamado, se apagava por trás da figura de um tirano brutal, que fazia
reinar o terror em sua escola. Acusaram-no então de ele não aceitar nenhum
visitante, a não ser, e em condições muito restritivas, as famílias das
crianças que ali estavam.
Logo os ataques da mídia norte-americana se estenderam à sua vida e à
sua obra. Os atributos de impostor, de falsificador e de plagiário se somaram
ao de charlatão – possivelmente por ele não ser médico. Esse tumulto teve pouca
repercussão na França, onde ele gozava – em razão do sucesso do seu livro A
fortaleza vazia, sobre as origens e o tratamento do autismo, e do programa
destinado à Escola Ortogênica, realizado para a televisão francesa em 1974 – de
um imenso prestígio que só foi prejudicado pelo declínio geral das ideias
filosóficas e psicanalíticas nos anos 1970.
Autor
É psicanalista e escritora.
Participa do Grupo Acesso, que realiza estudos, intervenções e pesquisas sobre
adoção na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae. É consultora de ONGs ligadas à
defesa dos direitos humanos e autora de livros infantis e juvenis voltados à
formação da cidadania.
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