Do
quintal ao smartphone
Moysés
Abbud - Psicólogo
“O homem não é um ser
completo senão quando joga “. A arte a ciência e a religião são, freqüentes
vezes, jogos sérios. Joga-se a pintar ou a rimar, como se joga o xadrez; e
muitas obras que encantaram gerações inteiras não eram, para os
seus autores, mais que jogos esplêndidos”. (Chateau 1961)
Quando a criança brinca ela está
exercendo uma atividade muito importante para o seu desenvolvimento social uma
vez que se coloca diante de outro e isso conduz ao relacionamento grupal. Mesmo
quando brinca sozinha e joga consigo mesma há uma representação envolvida que
permite à criança um estar “simbólico” com outro.
Os jogos infantis, ao que parece, são
universais. Toda criança joga. Há relatos de brincadeiras infantis entre os
gregos. Em um famoso quadro do século XVI, Pieter
Bruegel pintou uma cena chamada JOGOS INFANTIS na qual ele nos mostra pelo
menos 84 tipos diferentes de jogos da época sendo que alguns deles jogados até
hoje. “Um verdadeiro estudo antropológico
das atividades lúdicas das crianças
flamengas do século XVI. Os jogos não comportam alegria: nenhuma criança ri”.(
Gênios da Pintura - 1980 ).Pode parecer estranho que nenhuma criança sorria mas
a época em que foi pintado o quadro, crianças eram consideradas pequenos
adultos e a obra do pintor é por demais sombria. No entanto a atividade das
crianças representada é tal que o tema fala por si só. As atividades frenéticas
não correspondem à sobriedade dos rostos.
As Reinações de Narizinho datam de
1921/22 e foram refeitas algumas vezes. Na edição de 1959 os editores, em nota
inicial, comentam a obra infantil de Monteiro Lobato destacando a importância
da fantasia para a criança: -“Reinações é
mais que um simples livro. É um artigo de primeira necessidade para a
Psicologia e formação da criança brasileira....” “Não há em suas histórias
nenhuma diferença entre o real e o irreal
- e é essa a Psicologia infantil universal...” (Reinações de Narizinho
-1959 ).
Para Claparède, “ Na criança o
jogo é o trabalho, o bem, o dever, o ideal de vida. É a única atmosfera em que o seu ser psicológico pode respirar e,
consequentemente , pode agir.” “A
infância serve para jogar e imitar” (Chateau 1961)
E o que fez Alice, personagem de Lewis Carrol, quando enfastiada de estar
sem fazer nada junto à sua irmã? Criou seu jogo de faz-de-conta e percorreu
estranhos lugares, conheceu estranhas figuras, viveu situações inusitadas que
só a fantasia poderia criar. Por meio da fantasia ela questionava o crescer “Mas então,
pensou Alice, será que nunca vou ficar mais velha do que estou agora? Sempre é
um consolo... nunca ser uma mulher velha...mas então terei sempre lições para
aprender! Oh, isso não, disso é que eu não gostaria mesmo!” (Carrol 1982,).
O mundo infantil com vantagens e desvantagens sendo questionado pela personagem
só é vencido pela lembrança da escola, o que a faz desistir de permanecer
criança para sempre.
Os próprios contos de fada, num jogo de faz-de-conta, colocam situações
nas quais a criança também pode se espelhar. Não seriam eles uma espécie de
jogo? As adivinhações, parlendas e quebra-línguas se enquadram nessa categoria.
A criança quando brinca ou joga
representa e “as atividades representativas
são formas de conhecer; são instrumentos de que a criança se utiliza para compreender e apreender o real.”( Corso
). “A representação é condição para a
operação porque é a capacidade de representar que possibilita a tomada de
consciência da organização do mundo, na medida em que ela torna possíveis os
quadros que englobam simultaneamente os fatos passados, presentes e futuros”.(
Idem )
A infância, como a conhecemos hoje, é
uma construção social. Precisamos perceber que nessa construção a infância teve
momentos que permitiriam seu desenvolvimento mais amplo. Por exemplo haviam
quintais nos quais as brincadeiras e o convívio com hortas, plantas, terra e
animais domésticos era acontecimento comum. Era possível as brincadeiras de rua
nas quais os papeis eram criados pelas crianças sem interferência adulta e ali
elas se conheciam e determinavam regras para os jogos, criavam e aplicavam
sanções. A escolarização acontecia tardiamente se comparada com a atualidade.
Institucionalizar uma criança era comum após os sete anos de idade. O contato
com a família era mais intenso de certa forma. Idosos eram seres presentes e
que participavam ativamente da vida da criança. Adultos eram transmissores de
conhecimento. Eram depositórios de informação e, através da tradição oral,
passavam às crianças toda uma cultura espontânea. Eram fonte de conhecimento e
de relatos das histórias clássicas dos contos de fada ou ainda de histórias
locais, de cultura local. A tecnologia, com o desenvolvimento acelerado e
associada a outros fatores, tornou-se um anteparo a este convívio bem como a
escolarização precoce (se comparada a tempos passados).
Embora um arcabouço cultural cerque a
criança de informações e a obrigue a padrões de comportamento, a infância é o
espaço do brinquedo, do lúdico. Algo que surge como um termômetro para essa
verificação é o fato de que, com toda tecnologia e aparato tecnológico,
crianças ainda se entregam ao prazer das brincadeiras, ao prazer de ouvir
histórias da Carochinha, quando possível. Ainda hoje crianças se encantam com
contos de fada (ainda que criticados como politicamente incorretos) apesar dos
apelos das imagens dos games, da TV e similares.
E é no brinquedo, no lúdico que a
criança busca tornar-se pessoa. E nesses momentos de lazer ela aprende e tenta
entender a cultura, o mundo dos adultos que se mostram tão incoerentes e
assustadores por vezes. A tecnologia
está interferindo em nossas vidas tornando-nos dependentes de algum dispositivo.
Os smartfones, o Dr. Google (substituo informatizado do conhecimento adulto),
entraram definitivamente em nossas vidas e na das crianças. A TV é fonte de
informação. É comum, hoje, em crianças o domínio de tecnologias às vezes mais
que adultos. As brincadeiras de rua praticamente não existem. Às escolas cabe a
função do resgate de tradições infantis. Os quintais desapareceram
praticamente. Com eles os jogos. Uma geração nova pode estar surgindo de
adultos sem infância ou, por outra, de uma infância sem cantigas de roda, sem
canções de ninar, sem fantasias. A consequência? Ainda não sabemos. O certo é
que de alguma forma a infância como a conhecemos está se acabando, ou se
transformando.
Bibliografia
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Coleção Gênios
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1980
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