quarta-feira, 13 de junho de 2018

Do quintal ao smartpohne


Do quintal ao smartphone
Moysés Abbud  - Psicólogo







“O homem não é um ser completo senão quando joga “. A arte a ciência e a religião são, freqüentes vezes, jogos sérios. Joga-se a pintar ou a rimar, como se joga o xadrez; e muitas obras que encantaram gerações inteiras não eram, para os seus autores, mais que jogos esplêndidos”. (Chateau 1961)
Quando a criança brinca ela está exercendo uma atividade muito importante para o seu desenvolvimento social uma vez que se coloca diante de outro e isso conduz ao relacionamento grupal. Mesmo quando brinca sozinha e joga consigo mesma há uma representação envolvida que permite à criança um estar “simbólico” com outro.
Os jogos infantis, ao que parece, são universais. Toda criança joga. Há relatos de brincadeiras infantis entre os gregos. Em um famoso quadro do século XVI, Pieter Bruegel pintou uma cena chamada JOGOS INFANTIS na qual ele nos mostra pelo menos 84 tipos diferentes de jogos da época sendo que alguns deles jogados até hoje. “Um verdadeiro estudo antropológico das atividades lúdicas das crianças flamengas do século XVI. Os jogos não comportam alegria: nenhuma criança ri”.( Gênios da Pintura - 1980 ).Pode parecer estranho que nenhuma criança sorria mas a época em que foi pintado o quadro, crianças eram consideradas pequenos adultos e a obra do pintor é por demais sombria. No entanto a atividade das crianças representada é tal que o tema fala por si só. As atividades frenéticas não correspondem à sobriedade dos rostos.
As Reinações de Narizinho datam de 1921/22 e foram refeitas algumas vezes. Na edição de 1959 os editores, em nota inicial, comentam a obra infantil de Monteiro Lobato destacando a importância da fantasia para a criança: -“Reinações é mais que um simples livro. É um artigo de primeira necessidade para a Psicologia e formação da criança brasileira....” “Não há em suas histórias nenhuma diferença entre o real e o irreal - e é essa a Psicologia infantil universal...” (Reinações de Narizinho -1959 ).
Para Claparède, Na criança o jogo é o trabalho, o bem, o dever, o ideal de vida. É a única atmosfera  em que o seu ser psicológico pode respirar e, consequentemente , pode agir.” “A infância serve para jogar e imitar” (Chateau 1961)
E o que fez Alice, personagem de Lewis Carrol, quando enfastiada de estar sem fazer nada junto à sua irmã? Criou seu jogo de faz-de-conta e percorreu estranhos lugares, conheceu estranhas figuras, viveu situações inusitadas que só a fantasia poderia criar. Por meio da fantasia ela questionava o crescer “Mas então, pensou Alice, será que nunca vou ficar mais velha do que estou agora? Sempre é um consolo... nunca ser uma mulher velha...mas então terei sempre lições para aprender! Oh, isso não, disso é que eu não gostaria mesmo!” (Carrol 1982,). O mundo infantil com vantagens e desvantagens sendo questionado pela personagem só é vencido pela lembrança da escola, o que a faz desistir de permanecer criança para sempre.
Os próprios contos de fada, num jogo de faz-de-conta, colocam situações nas quais a criança também pode se espelhar. Não seriam eles uma espécie de jogo? As adivinhações, parlendas e quebra-línguas se enquadram nessa categoria.
A criança quando brinca ou joga representa e “as atividades representativas são formas de conhecer; são instrumentos de que a criança se utiliza para compreender e apreender o real.”( Corso ). “A representação é condição para a operação porque é a capacidade de representar que possibilita a tomada de consciência da organização do mundo, na medida em que ela torna possíveis os quadros que englobam simultaneamente os fatos passados, presentes e futuros”.( Idem )
A infância, como a conhecemos hoje, é uma construção social. Precisamos perceber que nessa construção a infância teve momentos que permitiriam seu desenvolvimento mais amplo. Por exemplo haviam quintais nos quais as brincadeiras e o convívio com hortas, plantas, terra e animais domésticos era acontecimento comum. Era possível as brincadeiras de rua nas quais os papeis eram criados pelas crianças sem interferência adulta e ali elas se conheciam e determinavam regras para os jogos, criavam e aplicavam sanções. A escolarização acontecia tardiamente se comparada com a atualidade. Institucionalizar uma criança era comum após os sete anos de idade. O contato com a família era mais intenso de certa forma. Idosos eram seres presentes e que participavam ativamente da vida da criança. Adultos eram transmissores de conhecimento. Eram depositórios de informação e, através da tradição oral, passavam às crianças toda uma cultura espontânea. Eram fonte de conhecimento e de relatos das histórias clássicas dos contos de fada ou ainda de histórias locais, de cultura local. A tecnologia, com o desenvolvimento acelerado e associada a outros fatores, tornou-se um anteparo a este convívio bem como a escolarização precoce (se comparada a tempos passados).
Embora um arcabouço cultural cerque a criança de informações e a obrigue a padrões de comportamento, a infância é o espaço do brinquedo, do lúdico. Algo que surge como um termômetro para essa verificação é o fato de que, com toda tecnologia e aparato tecnológico, crianças ainda se entregam ao prazer das brincadeiras, ao prazer de ouvir histórias da Carochinha, quando possível. Ainda hoje crianças se encantam com contos de fada (ainda que criticados como politicamente incorretos) apesar dos apelos das imagens dos games, da TV e similares.
E é no brinquedo, no lúdico que a criança busca tornar-se pessoa. E nesses momentos de lazer ela aprende e tenta entender a cultura, o mundo dos adultos que se mostram tão incoerentes e assustadores por vezes.  A tecnologia está interferindo em nossas vidas tornando-nos dependentes de algum dispositivo. Os smartfones, o Dr. Google (substituo informatizado do conhecimento adulto), entraram definitivamente em nossas vidas e na das crianças. A TV é fonte de informação. É comum, hoje, em crianças o domínio de tecnologias às vezes mais que adultos. As brincadeiras de rua praticamente não existem. Às escolas cabe a função do resgate de tradições infantis. Os quintais desapareceram praticamente. Com eles os jogos. Uma geração nova pode estar surgindo de adultos sem infância ou, por outra, de uma infância sem cantigas de roda, sem canções de ninar, sem fantasias. A consequência? Ainda não sabemos. O certo é que de alguma forma a infância como a conhecemos está se acabando, ou se transformando.

Bibliografia
·        ALENCAR, Eunice Soriano. ( org.) Novas contribuições da Psicologia aos
processos de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1993.
·        BESSA, Mahylda. Artes plásticas entre as crianças. Rio de Janeiro Livraria
José Olímpio Editora. - 1972.
·        CARROLL Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas.
Tradução de Sebastião Uchoa Leite. SP.SP Círculo do Livro 1982..                                                              
·        CHATEAU, Jean. A criança e o jogo. Coimbra, Portugal Atlântida Editora
 1961
·        CORSO, Helena Vellinho. A representação infantil e a educação pré escolar.
In Revista Educação e Realidade. Fac. De Educação do Rio Gde. Do Sul
Janeiro/junho de 1993.
·        FERNANDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada.2 ed. . Porto Alegre: Artes
Médicas 1991.
·        LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo. SP
Editora Brasiliense Ltda 1959
·        MOREIRA, Ana Angélica Albano. O espaço do desenho: A educação do
educador. São Paulo Edições Loyola. - 1984.
·        PILLAR, Analice Dutra. Desenho e construção de conhecimento na criança.
Porto Alegre  Artes Médicas -, 1996.
·        Coleção Gênios da Pintura. São Paulo Abril Cultural. Volume Maneiristas
e Barrocos. 1980

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