Cultura
Crônica do Villas
As mais belas histórias
publicado 11/03/2016 02h23
Entre elas, a
que fez aprender a não pegar doces escondido
No final de cada capítulo de Fala,
memória que estou lendo, paro pra pensar. De noite, como Vladimir Nabokov,
coloco a cabeça no travesseiro na tentativa de esmiuçar a memória, ir o mais
longe possível para reconstruir a caminhada, passo a passo, desde pequenininho.
Até adormecer.
De manhã, quando vejo um fio de claridade no canto da janela do meu
quarto, retomo. Insisto nos sete anos de vida quando, de calça curta ia
caminhando pela Rua Lavras até chegar ao Colégio Marista, onde estudava.
Por enquanto, não me lembro de nada do
segundo ano primário, do terceiro, do quarto, do exame de admissão. Lembro-me
perfeitamente do primeiro ano, quando Dona Maria Augusta Toscano colocou nas
minhas mãos um livro chamado As Mais Belas Histórias, de Lúcia
Casasanta.
Foi num dia de muito frio, chuva e vento. Antes de começar a aula de
Língua Pátria, Dona Maria Augusta fechou a porta da sala, uma porta enorme de
madeira maciça e vidro fumê, e disse:
- Vamos fechar porque senão daqui a pouco teremos picolé de
Alberto.
Eu sentava bem perto da porta, um lugar privilegiado que dava para
assistir as aulas e ver o movimento lá fora, um professor que passava, uma
faxineira que varria o chão, pardais e pombos que chegavam em busca de farelos
de pão.
Minha professora tinha uma pilha de livros em cima da mesa, todos eles
meio estropiados, judiados pelo tempo. Mas as mais belas histórias ali dentro,
estavam intactas.
Foi nesse dia que comecei a pegar gosto
pela leitura. As histórias do livro tinham uma linguagem simples e eu, que
acabara de aprender a ler, conseguia ir até o fim de cada uma delas,
acompanhando a leitura com uma régua que ia deslizando, frase por frase.
Era uma vez, Dona Cutia que não podia
viver sossegada com as amolações dos outros bichos. Uns pediam-lhe água, outros
comida, outros lenha. Uns iam visitá-la, outros faziam barulho na porta
da casa. Não lhe davam um minutos de sossego. Até de noite os bichos vadios
gritavam.
- Vamos à casa de Dona Cutia.
Foi paixão à primeira vista por esse
livro, que tinha uma capa azul e desenhos de um espantalho, um coelho, um porquinho,
três crianças, um príncipe, uma bruxa e uma Rapunzel jogando suas tranças da
janela de um castelo.
Dona Maria Augusta deixava os alunos levarem os livros pra casa,
contando que não os estragassem e que trouxessem de novo para o colégio, no dia
seguinte.
Ia pegando gosto pela leitura a cada história que lia. Que me perdoe,
Vladimir Nabokov, mas não me lembro de todas. Um dia vou conseguir buscar na
minha memória todas elas, uma a uma.
A galinha de tia Micaela
Guilhermina, a desastrada
Plantem árvores, meninos
Guilhermina, a desastrada, se não me falha a
memória, era a história de uma menina que saiu de casa para comprar um litro de
leite, no tempo em que leite vinha numa embalagem de vidro. Ela vinha sonhando
com um mundo cheio de coisas que ela queria, quando tropeçou e quebrou o litro
de leite, jogando seus sonhos pelo ralo.
Eu nunca me esqueci da história daquela outra menina que foi a uma festa
de aniversário e, muito gulosa, pensou em levar, escondido, um punhado de doces
pra casa. Ela carregava uma sombrinha nas mãos e foi dentro da sombrinha que
foi colocando os cajuzinhos, os canudinhos, os olhos de sogra, os bombons
recheados com uva verde.
Despediu-se de todos e quando saiu, viu
que estava chovendo. Esqueceu-se que dentro da sombrinha tinham todos aqueles
doces que havia furtado e abriu, na frente de todos. Voou doces para todos os
lados e ela quase morreu de vergonha.
Li e reli essa história inúmeras vezes.
E cada vez que lia, sofria com aquela menina que tanta vergonha passou.
Caro Vladimir Nabokov, tenho certeza
que foram essas histórias que me fizeram gostar tanto de ler e também de contar
histórias. E acho que essa última, em particular, me ensinou também a
nunca pegar um doce numa festa e levar pra casa, escondido.