segunda-feira, 8 de maio de 2017

Contos de Fada, uma visão psicológica



Contos de Fada, uma visão psicológica
Moysés Abbud


 
“Não, não devemos ter receio de levar o maravilhoso às crianças” essa frase de J. P. Stahl está no prefácio dos Contos de Perrault de 1883 e completou 126 anos. Sthal como estudiosos da psicologia infantil modernos se entendem no aspecto da fantasia necessária à infância ainda que mais de um século os separem. Se levarmos em consideração que no século XIX, quando a frase foi escrita, a educação nos parece bastante rígida nos moldes tradicionalistas, que tanto se teme hoje, veremos que a visão do universo infantil encontrava um avanço nas palavras do prefaciador de Perrault. Mas o universo infantil é muito mais antigo e a infância conservadora no sentido de que se vive nela os mesmos anseios e dramas há séculos. Podemos entender também que os medos infantis são os mesmos e que se repetem a cada geração. Uma prova irrefutável disso se encontra em uma das fábulas de Esopo. Nela a ama tentar silenciar uma criança chorona ameaçando-a de chamar o lobo para levá-la. O lobo, que ouvia a conversa e estando faminto, alegrou-se da ameaça e postou-se à janela a esperar sua refeição, que não veio, pois a criança cessou o choro. A ama, agradecida, disse enérgica que se o lobo chegasse teria de se ver com ela defendo seu bebê. 
 
happens when you believe people who say one thing and mean another.

O animal assustado pôs-se a correr. Se há 500 anos antes de Cristo essa criança emitia um comportamento completamente compatível com padrões atuais, é porque a infância possui uma característica imutável e universal. A ama agiu como ainda hoje muitos adultos agem, pois sabem de antemão que a criança teme pela sua integridade física (um temor básico). A criança tem a capacidade de crer. Se dissermos a ela que o lobo mau ou o bicho-papão virão buscá-la, ou que papai Noel existe ela não questiona, crê. Assim o é com as fadas, animais falantes, duendes, bruxas e outros personagens dos contos de fada. Muitas delas nunca viram um castelo e se encantam com a presença deles em muitos contos sem questionar sua existência. Talvez o fator “conservadorismo infantil” garanta à literatura fantástica presente nos contos de fada o seu sucesso através dos séculos.
Os contos de fada foram criados pelos adultos que neles projetaram parte de seus medos inconscientes. “Todo medo tem sua origem na infância” e é para a infância que são dirigidas essas criações da cultura onde se é possível encontrar coerência dentro das contradições da vida que se nos apresenta a cada instante. Neles é possível encontrar o pensamento coletivo, social nas diversas formas da atividade humana, do amor ao ódio, do trabalho ao ócio, da virtude ao vício. Traduzem de maneira simbólica a maneira pela qual os mundo adulto e infantil se cruzam e se falam sem contudo ter a crueza da realidade, mas também sem dissimulação. O fato de se apresentar nesses contos a vida em forma de fantasia não significa tapear ou enganar a criança. A vida é por demais estranha a ela e sua forma de ver o mundo é através da fantasia. Nesse sentido os contos são criações sábias, pois possuem a capacidade de dialogar com o mundo infantil de maneira criativa transformando-se assim em um elemento terapêutico trabalhando as angústias, tristezas e perdas que acontecem e fazem parte de nossa vida.Entenda-se que ao contar uma história não estaremos a fazer terapia e sim agindo de forma terapêutica, acalmando, dialogando, exercendo            sobre a criança uma ação extremamente humana. Uma espécie de catarse quando se poderá, naquele momento, vivenciar sentimentos de piedade, prazer e desprazer, bem como possíveis traumas acumulados já em tão pouco tempo de vida através dos elementos constantes do conto.
Assim como os contos de fada, os jogos infantis, ao que parece, são também universais comprovando que a infância “é a mesma” em épocas diferentes. Toda criança joga. Em um famoso quadro do século XVI, Pieter Bruegel pintou uma cena chamada Jogos Infantis, na qual ele nos mostra pelo menos 84 tipos diferentes de jogos da época sendo que alguns deles jogados até hoje. “Um verdadeiro estudo antropológico das atividades lúdicas das crianças flamengas do século XVI. Os jogos não comportam alegria: nenhuma criança ri”.(Gênios da Pintura - 1980 ).Pode parecer estranho que nenhuma criança sorria mas à época em que foi pintado o quadro, crianças eram consideradas pequenos adultos, a infância uma parte muito pequena da vida, e a obra do pintor é por demais sombria. No entanto a atividade representada é de tal força que o tema fala por si só. As atividades frenéticas não correspondem à sobriedade dos rostos. 




Estamos na era da comunicação e o século XX sua era de ouro. Os computadores e outros artefatos eletrônicos ameaçaram roubar o espetáculo dos contos maravilhosos. No entanto toda a parafernália eletrônica não foi capaz de ocupar o lugar das histórias infantis tradicionais que povoam a mente de crianças do mundo inteiro. O que pode ter acontecido é que os contos foram deixados de lado porque há uma nova configuração da família. Essa atividade doméstica, de contar histórias, está relegada a um plano inferior, pois a família mudou, transformou-se em outra família. A questão econômica retirou dos lares pai e mãe que tinham uma presença maior em casa e o hábito de contar histórias verificava-se de um adulto para uma criança. Adultos e idosos, que até então eram fonte de conhecimento, se viram relegados também a um segundo plano nesse sentido. A terceira idade (ou o adulto em geral) retinha um saber que o mais jovem não possuía e entre eles encontrava-se os contos, a capacidade de narrar, da tradição oral além, de casos fantásticos e, é claro, a experiência de vida. O mais velho retém um saber que interessava (interessa) à criança.
O contato da infância com outra geração mais velha é importante na medida em que humaniza as relações retirando de artefatos artificiais mecanizados a fonte principal de conhecimento. Contar história envolveria, então, uma relação harmônica entre gerações solidificando o papel do adulto como o de autoridade que a criança, os mais jovens, tanto buscam ainda que a princípio se oponham a ela. 


A ilustração acima é de Gustav Doré e consta do volume dos Contos de Perrault da edição de 1994 da Ed. Vila Rica .Nota-se que as crianças em volta de uma senhora idosa estão atentas à leitura de um volume no colo de quem poderia ser a vó. Todas as feições estão representando atenção à narrativa da velha senhora. Os brinquedos momentaneamente esquecidos. A cena é uma representação do que se vê ainda hoje quando dispensamos à criança atenção. Ouvir, para elas, é muito importante. Um outro aspecto encontra-se na pausa que deve ser dada para a narração. O tempo do conto é o tempo em que os afazeres corriqueiros são esquecidos momentaneamente e a relação adulto/criança se fortalece.

Quando um adulto dispensa à infância um tempo para a narração de um conto, alguns fatores podem ser observados. Um primeiro, a afetividade. Está nessa hora, sendo dispensada atenção à criança e ela sente isso e agradece, pois o ato de contar histórias está impregnado de afetividade. É como se ela recebesse um presente. Sobre isso Lewis Carol observou em um poema “Criança da pura face sem névoas/E sonhadores olhos de espanto/Embora o tempo seja veloz/E meia vida separa você e eu/Seu adorável sorriso bem certo saudará/O presente de amor de um conto de fadas”. [1] A meia vida que separa criança e adulto encontra uma mediação no ato de contar histórias. Aí as diferenças existem como fatores para a solidificação das relações. Diferenças que fazem exatamente o encontro entre esses dois mundos. O adulto domina um vocabulário e uma técnica narrativa que faz com que a criança se envolva e se entregue ao ato de ouvir tão necessário ao aprendizado.
Ao narrar, o adulto se coloca como autoridade, pois além de dominar um vocabulário demonstra conhecimentos que vão além do real e do imediato fora da esfera pragmática do cotidiano. Na imaginação infantil surge uma questão em decorrência dessa habilidade adulta -”como reter tanta informação?” Tal fato desperta na criança admiração e respeito pela figura do adulto. A comunicação acontece satisfatoriamente. “A relação adulto/criança segundo José Fernando Miranda, é cada vez mais delicada e exigente”. O adulto não atua somente pelo que diz e age – mas por aquilo que realmente é. Os aspectos da sensibilidade são os que mais influenciam a criança. A ela não      interessa a competência profissional do professor e sim sua capacidade de comunicar e ser sensível, de compreender e aceitar. Nem tão pouco o fato do adulto ser correto, ético, mas de corresponder no mundo real coerentemente ao que apregoa. A criança é um ser intuitivo capaz de ler nas entrelinhas, de entender o não dito.
Um outro aspecto encontra-se na pausa que deve ser dada para a narração. O tempo do conto é o tempo em que os afazeres corriqueiros são esquecidos momentaneamente e a relação adulto/criança se fortalece. Há uma percepção diferenciada do tempo que estimula o bem estar inclusive físico. É também a pausa para o descanso. A criança aprende, sem traumas, que se faz necessária uma postura intelectual e física, diferenciada daquela que geralmente apresenta no dia a dia, para escutar. Isso será de fundamental importância na vida escolar.
Nessa atividade há também a importância do contato com a linguagem muitas vezes característica e particular aos contos. As palavras são observadas pela criança, o que pode ter influência benéfica no processo de alfabetização e, mais tarde, no gosto pela leitura. Estruturas gramaticais, vocabulário e entonações de voz compõem uma situação na qual adulto e criança se envolvem dando dimensões novas ao contato mútuo incentivando e vivenciando situações lúdicas. Expressões como Era uma vez...Houve uma vez um tempo... Levam à imaginação da criança uma outra dimensão. Uma dimensão mágica e diferenciada dos apelos televisivos, principalmente, que roubam a chance de se poder imaginar o que é transmitido oralmente. Em muitas histórias irão surgir personagens que não fazem mais parte do nosso tempo onde as necessidades econômicas são outras daquelas do tempo do conto. No entanto até esse aparente anacronismo torna-se importante, pois nos contos de fada há um registro histórico. Algumas vezes surgem personagens como moleiro, hortelão, príncipe, princesa que, se fazem parte algumas do nosso vocabulário corriqueiro, outras são por demais anacrônicas. É justamente esse anacronismo um importante elemento para que o mais jovem assimile uma característica típica do adulto, segundo Neil Postman, - preocupação com a continuidade histórica.
No adulto concentra-se a narrativa, ele dá o tom da história e promove a atenção da criança. Essa atividade que já foi prática comum em nosso meio tende a desaparecer com a nova configuração da família e a perda da tradição oral. Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala nos informa que no interior do Brasil do século XIX havia uma preocupação das famílias em fornecer às suas crianças essa oportunidade de ouvir histórias contratando negras que percorriam os engenhos ensinando histórias aos adultos. Eram chamadas aki-palôs.[2] Essa atividade como atividade doméstica pode sim desaparecer, porém os contos de fada continuarão, pois são criação do inconsciente coletivo, nos falam em linguagem arcaica e simbólica de elementos que agem diretamente ao sentimento e não à razão.


Com o desenvolvimento e transformação da economia, a família tomou um novo formato. O lugar da mulher há muito deixou de ser o de dona de casa. Ela também é parte da população economicamente ativa. Por essa e outras razões a atividade de contar histórias reduziu-se. Provavelmente muitos dos pais jovens de hoje não ouviram histórias de seus pais. Às escolas ficou relegado esse papel. Nela ou em algumas delas, preserva-se essa atividade que, pode despertar na criança o sentido de humanidade roubado pelo contato constante com a tecnologia.
Certamente a mídia eletrônica interfere em muito na percepção de mundo. Quando a história é narrada a criança imagina, cria sua concepção de mundo e elabora esteticamente os personagens. Na era da comunicação as imagens são dadas impedindo que haja uma criação ou elaboração de dados que seriam criados pela mente infantil.
É preciso pensar que a sociedade caminha para uma dependência cada vez maior do aparato tecnológico. Os games, mini-computadores e celulares polivalentes e outros tantos engenhos da modernidade interferem em nossa percepção de realidade.Criam um mundo do individual voltado para uma comunidade egoísta. Produz-se outra cultura a partir dessa nova forma de se viver e perceber a vida. Porém o que há de simbólico e humano será sempre buscado, pois é impossível ao ser humano conviver sem seus símbolos. Os contos de fada são, em última análise, um compêndio para que a criança entenda o complicado mundo em que vive rodeado de adultos, que nem sempre são a garantia de sua proteção e felicidade,
Para o jurista e psicanalista Rodrigo da Cunha Pereira, a primeira Lei é uma lei de família, uma lei que atribuiu ao ser humano a característica de poder criar cultura. A necessidade de se instalar regras para o convívio humano impôs-se de maneira a agrupar os indivíduos não apenas para satisfação básica de instintos, mas para satisfação da necessidade de afeto. Era a lei do pai. Daí surgiu o grupo familiar, unido por laços afetivos. E é justamente família o tema natural e central dos contos de fadas. É desse material que são criados. Quando num desses contos há a presença de reis e rainhas o simbolismo é justamente pais e mães como príncipes e princesas são filhos. Na linguagem coloquial do nosso cotidiano referimo-nos sempre ao simbólico. Ainda que anacrônica a expressão “rainha do lar” subsiste bem como “meu rei”, “meu príncipe encantado”, e é comum ligarmos nossas crianças a príncipes e princesas. Então, existe uma ligação entre linguagem e contos de fada que é bem clara e que, apesar de toda era tecnológica, não perdeu sua significação.
A família é a primeira referência de mundo para a criança. Nela se desenrolam os dramas da existência e nela assimilamos a realidade. Nossa visão de mundo e percepção ética da vida tem nela sua base. Para a criança, ser abandonada pelos pais (entes queridos), perder a integridade corporal e a eliminação do convívio são medos básicos que geram muita ansiedade. Uma prova disso é que pais que se atrasam para buscar seus filhos nas escolas são surpreendidos, muitas vezes, com o choro compulsivo e desesperado daqueles acreditando terem sido esquecidos. Nesse momento o sentimento de perda é vivido com intensidade. São desses medos e sentimentos que os contos de fada tratam e que podem ter, por esse motivo, um valor terapêutico. Nesse aspecto ajudam a criança a conviver e vencê-los. Como equivalentes estão as cantigas de ninar que falam de bicho-papão em cima do telhado, boi-da-cara-preta que vem pegar neném, cucas, mas que, na doçura de um acalanto tratam de amenizar esses medos. Justamente porque falam dos medos na voz de um adulto cuidadoso é que as crianças adormecem sem se apavorarem com personagens macabros pois sabem que esses monstros não vão tocá-los enquanto se sentirem protegidos.
        Vingança, perda, competição, astúcia, abandono, são acontecimentos do dia a dia que fazem parte do universo infantil e são bem entendidos à luz da linguagem simbólica que os contos maravilhosos proporcionam. Por isso, segundo Bruno Betthelheim, “o valor do conto de fadas para a criança é destruído se alguém detalha os significados...”, pois devem ser compreendidos ou assimilados através da percepção inconsciente que não pede explicações formais. Geralmente a criança ouve a história em silêncio e pode, algumas vezes, solicitar algum esclarecimento que deve ser dado com cuidado para que o adulto não destrua o significado original da cena ou do personagem.
        A pergunta que se pode formular é:- Por que com toda essa parafernália tecnológica crianças ainda se encantam com contos de fada? O lobo, a bruxa, a fada povoam a fantasia de crianças pelo mundo afora. A resposta pode estar no símbolo. Para a Psicanálise o conhecimento do símbolo é inconsciente e fala diretamente à sensibilidade, ao subjetivo mais que à razão. Esse fato deve garantir a ampla aceitação por crianças, (que nunca viram uma fada, castelos, nunca estiveram em florestas ou enfrentaram lobos ou gigantes), dessas histórias repletas de fantasias e acontecimentos mágicos.
        O material dos contos de fada também é o material dos sonhos. “Os pais aparecem em sonhos como imperador e imperatriz, rei e rainha ou outras personagens respeitadas; com isso, os sonhos evidenciam muito respeito filial. Tratam, porém com muito menos ternura os filhos, os irmãos e as irmãs: esses são simbolizados como pequenos animais ou bichinhos”.[3]
        Se o material dos contos de fada refere-se basicamente às relações familiares, devemos lembrar que conflitos familiares          envolvendo pais e a rivalidade entre irmãos é bastante real e trabalhada, nem tão simbolicamente assim, Nesse tipo de literatura. Histórias em que o irmão mais novo é desprezado pelo mais velho, ou que uma irmã é preferida causando inveja, ou ainda a mãe (ou madrasta) tem claras preferências por sua filha biológica são temas recorrentes.
        Há em alguns deles questões ligadas ao Direito de Família como quem ficará com a herança. Quem herdará o castelo ou sucederá ao pai (na função de rei). Esses temas são trabalhados e resolvidos de maneira a regular as tensões da infância. No final,geralmente, há um resgate da situação após provas difíceis e complicadas ou de injustiças que são sanadas num desfecho garantido a felicidade do herói/heroína.
 Há uma tendência atual de se reinterpretar os contos de fada em nome do politicamente correto alegando que pudessem ser transmissores de preconceitos e visões deturpadas de nossa cultura. A meu ver um erro. Os contos trazem linguagens milenares percebidas pela criança como forma de trabalhar dramas interiores pessoais. Ela aprende muito mais pelo exemplo dos mais velhos que pela palavra, mesmo porque o adulto é moralmente inconsistente e suas ações são avaliadas pela criança. Dos contos elas absorvem um mundo simbólico inatingível pela razão. Daí a importância do conhecimento teórico sobre o tema principalmente por parte dos educadores. Alguns valores presentes nos contos são geralmente despercebidos por esses críticos . Solidariedade é um deles. Em várias histórias há exemplos de altruísmo e bondade. Alguns personagens chegam a desafiar perigos imensos para ajudar ou salvar entes queridos.
A desconstrução desses textos interfere negativa e diretamente numa cultura milenar, pois a forma como os conhecemos hoje são transformações de mitologias antigas. Perrault, Grimm e outros não são exatamente autores dos contos, mas sim coletores dessas tradicionais formas de relatos que foram preservados pela tradição oral em função da alfabetização ser pouco disseminada em eras passadas e também porque faziam parte das atividades domésticas. Os contos são testemunhas do comportamento humano e da capacidade do ser humano de trabalhar e resolver conflitos através de recursos lúdicos.
Se por um lado a presença de personagens como Chapeuzinho Vermelho pode ser interpretada como modelo de submissão e obediência da mulher, por outro há figuras masculinas que demonstram uma fragilidade inadmissível para uma sociedade machista herdeira do patriarcalismo. Assim também como figuras femininas que detem poder vencendo pela astúcia ou pela magia como no caso das fadas e bruxas e de mulheres que conseguem ludibriar seus maridos gigantes antropófagos. Figuras masculinas de reis, por exemplo, são personagens que, geralmente, surgem inseguras, incapazes de reconhecer os ardis de suas esposas contra personagens infantis podendo ser facilmente enganadas. No caso da história Irmão , Irmã (ou o gamo encantado) a irmã é quem consegue dominar e salvar o irmão devolvendo-lhe a forma humana (alterada para um gamo pela bruxaria) após várias provações mantendo-se fiel a seus princípios morais enquanto o irmão dá vazão aos instintos naturais incapaz de lidar com a frustração ou de adiar satisfação (características da vida adulta). Em Os Cisnes selvagens, é também a irmã quem consegue reverter a situação da feitiçaria de uma bruxa (madrasta) que o rei/pai não pôde perceber, transformando seu irmãos em cisnes. Devemos nos lembrar que a figura masculina é historicamente agressora e os contos espelham o mundo real através do simbólico. Homens tradicionalmente são os caçadores e intimidadores. Mas nos contos de fada é possível apresenta-los como aparentes donos da situação, mas também como seres ingênuos vencidos pela astúcia de meninas frágeis e crianças sem força física, mas portadores de inteligência e criatividade. Vencer o adulto pela astúcia, essa seria a grande façanha da infância. Assim, homens e mulheres são apresentados como detentores de virtudes, mas também de vícios.
Em João e o pé de feijão, o protagonista vence um gigante cruel através da astúcia e valentia. O tema é recorrente em outras mitologias. Davi que vence Golias, por exemplo. Nota-se que João vive em companhia de sua mãe, pobre. A figura masculina é agressora (um gigante apresentado como antropófago em algumas versões). João que primeiramente é tido como ingênuo ao aceitar a troca da vaca por feijões mágicos consegue reverter a situação trazendo para a mãe conforto material justamente por essa troca aparentemente descabida.


A luta do gigante com João (d’o pé de feijão) deixa claro uma relação familiar, de luta entre o poder do adulto/masculino com     a criança, aparentemente indefesa e a incompreensão materna. Isso se observamos a história pelo lado simbólico. A família é composta pela mãe e pelo filho - João. Não há referência a um pai. Mas há a presença de um gigante, enorme e feroz que habita um outro mundo acima do ambiente dessa família reduzida. Um ser quase divino habitante das nuvens em um castelo sem ser rei. Mas lá também, nesse ambiente mitológico há uma esposa que engana através de omissões, o marido (gigante) e aparentemente é, também, tiranizada por ele. Simbolicamente poderíamos interpretar essa grande figura ameaçadora masculina como o pai. Em quantas famílias hoje podemos rever essa dinâmica do marido agressor tendo como vítima preferencial a mulher? Em um país em que se faz necessária delegacia especializada para mulheres, a história não parece tão fantástica assim. Faz-se necessária até uma lei específica – a Maria da Penha – para tentar abrandar a situação em pleno século XXI quando essas temáticas deveriam ser consideradas anacrônicas. No entanto é o pequeno João, considerado tolo a princípio, quem salva a situação trazendo para a casa o sustento e a riqueza conseguidos a custa da astúcia e coragem. As duas figuras masculinas –João e o gigante- representam os dois lados de um mesmo ser. Um bondoso e carinhoso , o outro terrível e cruel. Um que agride e outro que provê. É a dualidade de nossas ações demonstrando capacidade para a criação ou para a destruição.
O Barba Azul, outra história que nos remete a violência do masculino e da desobediência da mulher. Em muitos contos a heroína desobedece. Assim como no mito da criação do Gênese, a mulher é apresentada como frágil, passível de ser levada por paixões ou incapaz de enxergar o perigo. Muitas dessas personagens abrem portas proibidas (ou comem o fruto proibido) colocando sua vida em risco e despertando a ira do marido/pai (ou deus) diante da transgressão a uma proibição. No entanto a própria desobediência é um sinal de não submissão que dispara toda a trama para que ao final haja o resgate da situação (que não acontece na mitologia cristã. Nela Adão e Eva são condenados ao eterno sofrimento).
 
O mundo adulto por vezes é um mundo violento. O Barba Azul personifica a crueldade viril histórica do macho alfa.
O adulto surge nessa literatura muitas vezes como uma ameaça. O escritor americano Stephen King afirma que “muitos dos contos de fadas são mal disfarçados ataques contra os pais.” [4]Por isso mesmo são tão importantes para o universo infantil uma vez que abordam a questão das relações entre gerações de maneira a visualizá-la sem traumas. Um exemplo disso está na história de João e Maria.


No conto João e Maria, as crianças são abandonadas pelos pais, justamente de quem se esperava proteção. A presença do adulto é ameaçadora. Se o abandono pela família é um trauma,o encontro com uma bruxa mais ainda. No entanto as crianças voltam para casa sem cobrar os pais pelos erros. Talvez essa situação demonstre que a infância é capaz de sobreviver a traumas e que inconscientemente percebam que adultos falham. A história é basicamente sobre o medo do abandono.

      Abandonados pelos pais para que morra na floresta, a dupla sobrevive graças a astúcia dos personagens. Ainda sobrevivendo ao abandono encontram outro adulto, desta vez na figura da bruxa, com uma promessa de vida melhor (a casa de doces) que se mostra posteriormente como mais um desafio à sobrevivência. Que pais poderiam abandonar seus filhos de maneira tão cruel? A resposta está na realidade de nosso mundo, nas páginas policiais. Adultos são uma ameaça à infância, mas são também, por outro lado, a segurança de uma vida íntegra. Outro exemplo seria a história de Rapunzel. Nela os pais apresentam-se como inescrupulosos ao prometerem a filha a uma bruxa, assim que nascesse, em troca de pequenos desejos maternos que poderiam ser adiados ou evitados. Um adulto deve ser capaz de adiar satisfações ou evita-las caso a situação assim o exija. A importância dos contos de fada é exatamente a capacidade de mostrar à criança a existência do mal de maneira que ela possa assimilar esses aspectos por demais verdadeiros e presentes no seu cotidiano sem traumas. As crianças precisam acreditar  que os adultos têm controle sobre seus impulsos para a violência e que têm uma concepção clara do que é certo e errado[5]. Assim, o exemplo de comportamentos inadequados por parte de um adulto nesses contos aponta para uma interpretação, por parte da criança, de um mundo incoerente que por algumas vezes oferece perigo a sua existência sem, contudo questionar a autoridade que o adulto deve ser.


[1] Bruno Bettelheim, A Psicanálise dos ontos de Fada – Paz e Terra - 1980
[2] Gilberto Freire in Casa Grande e Senzala – paginas
[3] Freud, Sigmund. Obras completas páginas 183, 184 – volume XV.
[4] Stephen King Dissecando Stephen King - 1995
[5] Neil Postman – O desaparecimento da Infância – 1999 Ed. Graphia
Perrault, Charles. _ Contos de Perraul - 1994 Ed. Vila Rica

domingo, 7 de maio de 2017

A cavalgada das Bruxas

A cavalgada das bruxas

Dizem que as velhas bruxas, que se escondem nas grutas solitárias, não incomodam mais a gente. Por que será ?
        Só Adrião o sabe, mas Adrião não conta a ninguém, pois tem medo que seu nariz fique de palmo e meio. E como é que Adrião o sabe?
        Aí é que está a história.
        Adrião era um pastor muito valente que vivia à guardar os seus rebanhos ao pé da Montanha Negra.
        Um dia — era ele mocinho — ficou procurando um carneirinho que desaparecera  de repente, procurando, procurando, até que, desanimado de achá-lo, resolveu voltar para casa.
Adrião olhou para as estrelas e viu que já era perto de meia-noite. A noite estava muito escura.
        Meia-noite era a hora era em que as bruxas costumavam sair das cavernas. Adrião ia a caminho de casa, quando, ao passar perto de uma caverna, ouviu algumas vozes estranhas e o barulho de cabos de vassoura.
         — Quem poderá andar por aqui, por estas horas? disse Adrião consigo mesmo.
          Adrião olhou em roda, mas não viu ninguém.
        — Ah! E se fossem as bruxas? — disse ele — É hora delas saírem.
        Adrião escondeu-se numa moita de capim e pôs-se a escutar.
        Pouco a pouco, as bruxas foram saindo da caverna nos seus cavalinhos de pau, que eram cabos de vassouras.Elas foram indo pelo ar e cantavam:
— No cabo desta vassoura
Pelo dom desta hora,
Vamos pelo mundo afora.
              Voaram até as nuvens, mas algumas ficaram perto da caverna, e uma gritou:
             — Carne humana! Estou sentindo cheiro de carne humana! Há uma pessoa por aqui perto de nós.
             Adrião pensou, pensou.
            — E esta agora? As bruxas acabam por me descobrir e…
                Uma bruxa deixou seu cabo de vassoura e deu volta à gruta, à procura de alguém.
Adrião, então, pegou o cabo de vassoura, montou nele e saiu voando. Adrião foi voando também, porque o seu cabo de vassoura o carregava.
                As bruxas voavam e cantavam, e Adrião foi voando e cantando atrás delas:
— No cabo desta vassoura.
Pelo dom desta hora,
Vamos pelo mundo afora.
                Voando, cantando, as bruxas atravessaram as florestas, os mares, as montanhas, até que chegaram aos. países gelados do Norte.  Passaram pela Dinamarca, pela Suécia e pela Noruega e foram dar à Lapônia. Viram, no meio de salgueiros brancos de neve, um castelo coberto de neve. Havia luz lá dentro.
                Devia de ser bem quentinho. Resolveram entrar nele e para ele se dirigiram.
Adrião viu uma porção de guardas, muito bem armados, ao redor do castelo, e disse consigo:
— E agora? Essas bruxas passarão, mas e eu, que não sou bruxa? Que vai ser de mim?
                Adrião, porém, não sabia que, quando era preciso, o cabo de vassoura o tornava invisível como as bruxas, e, por isso, ficou espantado de ouvir os guardas gritar, quando passaram no meio deles:
                — Irra! que ventania!
                Os salgueiros sacudiram seus galhos com violência, e os guardas seguraram os capacetes com a mão, para não voarem.
                As bruxas passaram no meio dos guardas e chegaram perto do grande portão de ferro, que estava fechado com sete chaves.
                — E agora? Como é que vou passar?
                Entretanto, as bruxas iam entrando pelos buracos da fechadura e Adríão também.
                Foram direitinho à adega, sentaram-se em torno de uma larga mesa e ali comeram as melhores comidas e beberam os melhores vinhos.
                Fartas de beber e comer, puseram-se de volta.
No cabo desta vassoura,
Antes que venha a aurora.
Antes que passe a hora,
Vamos, vamos embora…
                Voaram, cantando, chegaram cantando, e, antes adentrarem nas suas cavernas, uma bruxa disse a Adríão:
                — Adrião, bico calado! Não diga uma palavra do que viu, senão o seu nariz crescerá palmo e meio.
                Adrião não sabe o que se passou depois.
                Quando acordou, o sol já ia alto, e o seu chapéu de palha ia rolando pela montanha abaixo, levado pela brisa fresca da manhã.
                Adrião olhou ao redor e não viu nada.
                Só, ali perto, o carneirinho, que lhe dera tanto trabalho comia a relva verde e tenra da encosta da Montanha Negra.
                Adrião lembrou tudo o que acontecera de noite pôs a mão no nariz para ver se continuava do mesmo tamanho. O nariz era o mesmo. Não contaria nada ninguém.
OBS: Esta história tem um elemento diferenciado de outras sobre bruxas. A atitude delas é inusitada quando não questionam o comportamento de Adrião. O tempo todo sabiam, parece, da presença dele e deixaram que  desfrutasse de toda a aventura. É como se elas tivessem dado um “bem-vindo ao clube” e criado uma cumplicidade camarada. A marginalidade é por vezes algo excitante e sedutor. Ambas as partes estavam, digamos assim, perdidos na noite. Isso criou essa cumplicidade que favoreceu um prazer momentâneo, como acontece com a alteração do estado de consciência, quando um grupo se une para tal finalidade.  Essa característica desse conto garante de alguma forma uma identificação com a “marginalidade” das bruxas que não fazem mal a ninguém e têm momentos de prazer compartilhado com pessoas do mesmo grupo.  É uma espécie de comunhão. A única exigência é o pacto do silêncio. Adrião passou na verdade por um aprendizado fantástico, na verdade um privilégio. As bruxas, sempre tão mal vistas, dessa vez se mostraram camaradas e com um elemento muito pertinente para a humanidade – tolerantes. Adrião teve uma lição de tolerância descobrindo que o prazer compartilhado é um bem para o espírito.

Imagino que essa mensagem passada sutilmente para a criança, de alguma forma faz com que ela reaja positivamente perante alguns momentos da vida. A identificação com o herói faz com que a história seja mais interessante tornando-a fascinante perante os olhos infantis.
Adrião é o herói marginal. Marginal porque se manteve na clandestinidade, porque se uniu a um grupo depreciado pela maioria moral. Seu comportamento não pôde ser aberto. De alguma maneira foi uma transgressão. E se formos pensar que essas histórias estão recheadas de elementos da Idade Média (bruxa é uma preocupação da igreja) , Adrião fez parte de um grupo de resistência.

Uma história sobre como surgem as histórias


Uma história sobre como surgem as histórias





Não seria grande surpresa encontrar quem pense que os contos de fadas foram inventados pela Disney. Espera-se, porém, que a maioria saiba que são mais antigos. Mas quanto mais?
Ilustrações e desenhos animados tendem a reproduzir roupas e cenários do século XVIII ou XIX, porque as versões hoje mais populares vêm das coletâneas editadas por Charles Perrault (1628-1703), pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm (1785-1863 e 1786-1859, respectivamente) e por Christian Andersen (1805-1875), mas estas foram baseadas em narrativas orais recolhidas de tradições transmitidas entre gerações desde tempos imemoriais.
A presença de castelos, princesas, bruxas, dragões, florestas e cavaleiros dá a muitas dessas histórias um sabor medieval e muitos autores a discuti-las ou reescrevê-las presumiram ser elas originadas dessa época. 
Entretanto, em 20 de janeiro, a pesquisadora Sara Graça da Silva, da Universidade Nova de Lisboa e seu colega Jamshid J. Tehrani, da Universidade de Durham, publicaram um artigo intitulado “Análise filogenética comparativa descobre as antigas raízes de contos indo-europeus” no qual demostram ser alguns desses contos bem mais antigos. Mais velhos do que a mitologia greco-romana clássica, o Antigo Testamento ou qualquer língua registrada por escrito.
Análise filogenética é propriamente o estudo da relação evolutiva entre grupos de organismos por métodos quantitativos. Os autores dizem ter aplicado métodos inicialmente desenvolvidos pela biologia para analisar as relações entre contos, histórias das populações e distâncias geográficas e encontrado fortes correlações filogenéticas, mas não espaciais, indicando a predominância de processos verticais de herança cultural sobre os empréstimos colaterais.
Comparando-se as versões de um conto, pode-se, assim, reconstruir sua árvore genealógica, assim como se reconstrói a evolução de um gênero de espécies animais desde o século XIX de Charles Darwin, de uma família de línguas desde os pioneiros da linguística histórica no século XVIII ou das diferentes versões de um texto clássico ou bíblico desde os humanistas do Renascimento.
Em alguns casos, como suspeitava Wilhelm Grimm, mas duvidavam a maioria dos pesquisadores modernos, sua origem praticamente coincide com a das línguas indo-europeias.
O conto do qual se encontraram as raízes mais antigas é aquele conhecido como “O Ferreiro e o Demônio”, no qual o protagonista vende a alma a uma entidade maligna para obter um poder sobrenatural sobre os metais e então o usa para aferrolhar o ser diabólico e forçá-lo a desistir de sua parte da barganha.
Uma das evoluções modernas desse conto é, provavelmente, o Fausto de Johann Wolfgang von Goethe (1808), baseado em uma lenda registrada por escrito desde o século XVI. Mas a árvore filogenética construída pelos autores indica uma origem anterior a 4.000 a.C. e à própria metalurgia do ferro.
Provavelmente surgiu entre os primeiros pastores indo-europeus a dominar a metalurgia do bronze, na atual Ucrânia, antes que as grandes pirâmides fossem construídas. Foi contada pela primeira vez em uma língua há muito esquecida antes de ser repetida e modificada pelos descendentes desses pastores que se espalharam da Europa Ocidental à Índia.
Um tanto menos antigos são os contos “O Menino que Roubou o Tesouro do Ogro”, do qual derivam histórias como “João e o Pé de Feijão”,  o famoso “A Bela e a Fera” e “O Nome do Ajudante”, hoje mais conhecido como “Rumpelstiltskin”. Suas variantes são encontradas na maioria das comunidades linguísticas da Europa, de Portugal à Rússia, mas não nas línguas indo-iranianas.
Isso indica uma origem após a separação entre esses dois ramos culturais e linguísticos, mas antes de as línguas europeias divergirem nas subfamílias hoje conhecidas como eslava, germânica, celta e latina, por volta de 3.000 a.C.
Seria interessante descobrir se esse método pode ser levado ainda mais longe a ponto de detectar histórias criadas antes da separação entre a família indo-europeia e outras grandes famílias linguísticas, ou seja, na Idade da Pedra. E esclarecer se a semelhança com essas histórias e outras encontradas em culturas não indo-europeias é devida a origens comuns pré-históricas, influências mútuas ou casuais.
A coletânea A Bela e a Fera ao Redor do Globo, de Betsy Hearne (Companhia das Letrinhas, 2013), lista 27 contos mais ou menos similares, alguns dos quais recolhidos de culturas não indo-europeias, inclusive indígena norte-americana (“O Velho Coiote”), africana (“A História das Cinco Cabeças”), japonesa (“O Genro Macaco”), chinesa (“A Serpente Encantada”), turca (“A Princesa e o Porco”) e indonésia (“O Marido Lagarto”).
Entretanto, a ideia de que as semelhanças entre contos e mitos de diferentes culturas se devem a arquétipos inatos, gravados nos genes ou no mundo das ideias platônicas, pode desde já ser relativizada e questionada. É bem possível que tenham se difundido a partir de uma origem histórica ou pré-histórica definida, ao longo de peripécias tão interessantes quanto o próprio conto.